Uma máquina à venda 10 ago 2018

Uma máquina à venda

Por Moacir Drska
Fonte: Isto É Dinheiro

Pressionados por uma dívida de R$ 2,6 bilhões, os donos do grupo resultante da fusão entre a Ricardo Eletro e a Insinuante buscam uma saída na venda do controle para a gestora Starboard

Aos 12 anos, Ricardo Nunes já mostrava sua habilidade de vendedor em Divinópolis (MG). Primeiro, foram as mexericas colhidas no sítio da família. Depois, as bijuterias, os bichos de pelúcia e alguns eletrodomésticos trazidos de São Paulo. Batizada de Ricardo Eletro, a primeira loja própria veio aos 20 anos. Para conquistar a clientela e construir uma rede de mais de 200 pontos de venda, ele costumava recorrer a um bordão criado quando ainda era menino: “Cubro qualquer oferta”. O mote também dava o tom das campanhas estreladas pelo empresário. Esse poder de persuasão veio novamente à tona em 2010, quando ele costurou uma fusão com Luiz Carlos Batista, da varejista baiana Insinuante. Nascia a Máquina de Vendas. Com uma receita de R$ 4,1 bilhões, o grupo tornou-se o segundo maior varejista de móveis e eletrônicos do País, atrás apenas da Via Varejo, formada por Casas Bahia e Ponto Frio. E incorporou, na sequência, mais três bandeiras regionais: City Lar (MT), Salfer (SC) e Eletroshopping (PE).

A lábia de Nunes foi essencial para convencer outros empresários a embarcar nesse modelo. E agora, mais do que nunca, esse talento será crucial para o futuro da Máquina de Vendas. Pressionado por uma dívida de R$ 2,6 bilhões, o grupo busca alternativas para seguir em frente. A principal carta na mesa é um aporte de R$ 250 milhões, a ser realizado pela Starboard, empresa brasileira de investimentos especializada na recuperação de ativos em dificuldade financeira. Em troca, a Starboard assumirá o controle da operação, com uma participação de 72,5%. A negociação ganhou fôlego no início de 2018. E, por parte da Máquina de Vendas, está sendo conduzida por Nunes e por Pedro Magalhães, diretor financeiro da varejista. “Eles não têm muita opção”, diz uma fonte a par das tratativas. “Se não seguirem esse caminho, vão desaparecer ou virar um negócio de nicho e sem relevância.”

Uma das etapas para que o martelo seja batido é o anúncio da recuperação extrajudicial da Máquina de Vendas, que envolverá um passivo operacional de R$ 1,1 bilhão. Desse montante, 90% estão relacionados a dívidas com cerca de 300 fornecedores. Conforme apurou a DINHEIRO, a varejista já tem a aprovação de 75% desses credores. O processo aguarda os trâmites burocráticos para ser divulgado. A estimativa é que o acordo seja protocolado em até duas semanas e que sua homologação aconteça no prazo de quatro a seis meses. O R$ 1,5 bilhão restante da dívida refere-se a pendências com os bancos Bradesco, Itaú Unibanco e Santander, que começaram a ser renegociadas no fim de 2017. Procurada, a Máquina de Vendas não quis se pronunciar. Já a Starboard ressaltou que não comenta acordos em andamento. Mas observou que a expectativa é de que toda a reestruturação seja concluída, de forma satisfatória, nas próximas semanas. “Entendemos o grande potencial que a Máquina de Vendas tem como fundamento de negócio, o que se reflete no importante suporte dos fornecedores e credores financeiros até o momento”, afirmou, em nota, Pedro Bianchi, sócio da companhia.

A Starboard foi criada no início de 2017 por ex-executivos da área de reestruturações do banco Brasil Plural. A companhia tem como um de seus fundadores e sócios Fábio Vassel, que também atua como CEO. Entre os projetos tocados estão a reestruturação da Camisaria Colombo e a assessoria financeira na recuperação judicial da UTC. Em fevereiro, a gestora americana de private equity Apollo Global Management, que tem um portfólio global de US$ 247 bilhões, comprou uma fatia de 20% da Starboard, além de investir em um fundo que estava sendo captado pela brasileira na época. A parceira também está envolvida na aquisição da Máquina de Vendas. Procurada, a Apollo não quis comentar o tema.

NO CAIXA Os sócios da Máquina de Vendas não engordarão suas contas bancárias com o valor envolvido na negociação. Atualmente, Nunes e Batista são os principais acionistas do grupo, com participações de 55% e 42,7%, respectivamente. Na prática, haverá uma injeção inicial de capital para estabilizar a operação. “Diferentemente de um fundo tradicional, empresas como a Starboard entram em operações em condições excepcionais, emergenciais e de altíssimo risco. O objetivo é, rapidamente, voltar a gerar caixa”, diz Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo. A situação, de fato, pede urgência. Há pouco mais de dois anos, a varejista iniciou um processo de reestruturação e de integração – tardio, na visão de analistas – dos negócios incorporados desde a fusão.

O plano envolveu a unificação das marcas sob a bandeira Ricardo Eletro e foi concluído no fim de 2017. Entre as medidas tomadas e os impactos da crise econômica, o saldo é um negócio muito mais enxuto. Apesar de uma economia de R$ 600 milhões, foram fechadas 600 lojas desde 2016. Hoje, a rede conta com 645 pontos de venda. A equipe foi reduzida de 25 mil para 12 mil funcionários. Os 27 centros de distribuição foram consolidados em sete unidades. E a receita líquida caiu de R$ 7 bilhões, em 2015, para R$ 5,5 bilhões, no ano passado. Em seu auge, em 2013, a empresa chegou a faturar R$ 8,8 bilhões.

O contexto crítico não se esgotou na redução da operação. Concluída a reestruturação e com uma dívida ainda elevada, a empresa viu as restrições de crédito junto a fornecedores se agravarem, o que afetou substancialmente o abastecimento de suas lojas, que passaram a oferecer um mix limitado. “A companhia não estava preparada para uma crise econômica tão extensa”, diz um executivo do varejo. “Quando não se tem capital de giro, você começa a trabalhar com produtos desatualizados e em final de linha”, diz Ana Paula Tozzi, CEO da consultoria AGR. “E a empresa entra em uma espiral negativa, pois precisa reduzir os preços e sacrificar as margens para gerar caixa.”

A demora para extrair as sinergias de integração e os impactos da crise econômica são fatores que ajudam a explicar o panorama crítico da Máquina de Vendas. Mas um outro componente é ressaltado pelos analistas: a lentidão para implementar uma estratégia multicanal consistente. E a Via Varejo e a Magazine Luiza, que hoje dividem as duas primeiras posições no ranking do setor, são os exemplos citados para deixar claro o atraso da empresa nessa frente. “Todas as varejistas ficaram muito debilitadas com a crise, mas no caso da Via Varejo e da Magazine Luiza, a lição de casa estava bem feita”, diz Terra. “A Máquina de Vendas não conseguiu cumprir essa agenda, porque estava preocupada em sobreviver.” Jean Paul Rebetez, sócio-diretor da GS&Consult, ressalta que as iniciativas digitais vão muito além da operação de um canal de comércio eletrônico. “É preciso oferecer conveniência, rapidez e uma gama de serviços e de opções de interação para o consumidor”, afirma. “A Máquina de Vendas seguiu insistindo no modelo tradicional, baseado unicamente em preço e produto.”

Uma parte desse cenário é atribuída à gestão de Ricardo Nunes, que atua como CEO da Máquina de Vendas e é conhecido por seu estilo centralizador. “O Ricardo é um homem de balcão, um excelente vendedor e marqueteiro, mas não é um ótimo gestor”, diz uma fonte, que pediu anonimato. “Os desafios pela frente exigem uma visão estratégica, que ele, sozinho, não daria conta.” Segundo apurou a DINHEIRO, o empresário deve ser substituído no comando da companhia, mas manterá uma posição importante na operação, que passará por um processo de aprimoramento da governança corporativa. No processo, Batista, que preside o Conselho de Administração, também deve dar lugar a um executivo escolhido pela Starboard. “Se o fundo conseguir usar o Ricardo naquilo que de fato ele é bom, a força comercial e a relação com os fornecedores, o modelo pode ser extremamente positivo”, afirma Terra. “Ele tem uma enorme importância, tanto para o público interno como externo. A presença dele é fundamental para a recuperação da empresa”, diz um executivo do setor.

O caminho para a retomada, no entanto, inclui outras barreiras. Elas estão expressas em um imbróglio judicial envolvendo a família Salfer, antiga proprietária das Lojas Salfer e acionista minoritária da operação. O clã alega que não recebeu duas das cinco parcelas anuais de pagamento pela aquisição. Outra pendência são quatro lojas em Joinville (SC), que seguiram como ativos dos Salfer e foram alugadas para o grupo. Em 2017, a família entrou com uma ação de despejo, por falta de quitação dos aluguéis. O caso foi solucionado depois de um acordo. Na semana passada, um novo processo foi aberto, sob a mesma alegação.

O principal ponto de atenção, no entanto, é a renegociação das dívidas bancárias, ainda não concluída. O processo passa pela criação de uma nova holding controladora da Máquina de Vendas, a MV Participações, que faria uma emissão de debêntures, no valor de R$ 1,5 bilhão, subscritas pelos bancos credores Bradesco, Itaú e Santander. Essas instituições passariam a ser donas da dívida, com a possibilidade de convertê-las em ações da companhia. A família Salfer diz que essa arquitetura diluiria sua participação de 7% para 2,7%.

Depois de uma série de liminares, o clã decidiu levar o caso à Câmara de Arbitragem Brasil Canadá, alegando quebra de acordo de acionistas, pelo fato de que a entrada de terceiros na sociedade não poderia ser realizada tendo ações da própria empresa como garantia. A princípio, a questão parece não preocupar a Starboard. “Temos conhecimento da arbitragem, mas acreditamos que ela não terá nenhum impacto para o acordo que está sendo negociado”, afirma Marcus Bitencourt, advogado do escritório Campos Mello Advogados, que está fazendo a assessoria jurídica da companhia na negociação com a Máquina de Vendas.

 

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