A crise do Crédit Suisse e seu impacto no mercado brasileiro
Introdução
O início deste ano foi marcado por alvoroço no mercado financeiro internacional. Primeiramente com a falência do Silicon Valley Bank nos Estados Unidos, seguida pela aceleração dos problemas recorrentes enfrentados pelo Credit Suisse na Europa.
No começo de março, foi tomada a decisão de efetuar a extinção da dívida perpétua do CS, que era computada como capital regulatório da instituição. Essa decisão controversa criou uma onda de protestos e de desconfiança por parte dos investidores internacionais – que não somente possuíam exposição aos instrumentos de dívida do banco suíço, mas também haviam adquirido instrumentos semelhantes de instituições financeiras de todo o mundo.
A grande pergunta feita por todos era: poderia acontecer o mesmo com operações regidas por regulamentações de outros países?
Tentaremos responder essa pergunta com relação ao Brasil.
Regulamentação sobre títulos AT1 no Brasil
No que diz respeito ao capital regulatório, as instituições financeiras brasileiras devem seguir as diretrizes estabelecidas pelo Banco Central e pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) relacionadas com os guidelines do Acordo de Basileia III sobre adequação do capital com base no risco. Assim, e nos termos das definições de Basileia III, o capital regulatório é composto de dois níveis: Nível 1 e Nível 2. O capital Nível 1 tem uma exigência mínima de 6,0% em relação ao valor dos Ativos Ponderados pelo Risco (Risk Weighted Assets ou “RWA”), dividido em duas partes: capital principal e capital complementar (o chamado capital AT1). O capital complementar é basicamente composto de instrumentos híbridos de capital e dívida autorizados pelo Banco Central, enquanto o capital Nível 2 é composto de instrumentos de dívida subordinada autorizados pelo Banco Central, ambos calculados com determinadas deduções.
Uma das mais importantes alterações aplicáveis aos instrumentos de Nível 1 ou Nível 2 nos termos de Basileia III é que, para que um instrumento se qualifique como sendo de capital regulatório, a regra da Basileia III exige que ele contenha um dispositivo exigindo que o título de dívida em questão seja extinto ou convertido em capital ordinário caso ocorra um “evento de gatilho”. Nos termos do art. 15, inciso XV, e do art. 20, inciso X da Resolução CMN nº 4.955, os instrumentos elegíveis deverão ser permanentemente extintos por um valor, no mínimo, correspondente ao saldo computado no Nível 1 ou no Nível 2 do capital da instituição emissora, conforme o caso, nas seguintes situações:
- divulgação pelo banco de que seu Capital Principal está em patamar inferior a 5,125% de seu RWA (para instrumentos subordinados elegíveis ao Nível 1) ou inferior a 4,5% de seu RWA (para instrumentos subordinados elegíveis ao Nível 2), exceto quando a divulgação estiver sujeita a revisão ou republicação pelo Banco Central;
- assinatura de compromisso de aporte de capital pelo setor público para a instituição emitente nos termos de legislação específica, conforme previsto no art. 28 da Lei Complementar n.º 101 de 4 de maio de 2000[1];
- decretação, pelo Banco Central do Brasil, de regime de administração especial temporária[2] ou de intervenção na instituição emitente; ou
- determinação por escrito do Banco Central de extinção ou conversão dos Papéis Subordinados, segundo os critérios estabelecidos na Resolução CMN n.º 4.955 ou em outras regulamentações emitidas pela CMN[3].
Dito isso, cremos ser teoricamente possível, dentro do arcabouço brasileiro de adequação do capital, a ocorrência de uma situação semelhante à do Crédit Suisse (ou seja: uma situação em que o Capital Complementar seja totalmente extinto, mas possa restar aos detentores do Capital Principal algum valor residual).
Propostas de alteração na liquidação de bancos
No final de 2019, o Governo Federal apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 281/2019, que dispõe sobre os regimes de resolução das instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, pela Superintendência de Seguros Privados (“SUSEP”) e pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM” e, em conjunto com o Banco Central e a Susep, “Autoridades de Resolução”). A iniciativa é resultado de vários anos de discussão entre as Autoridades de Resolução e o mercado e está “inserida no conjunto de compromissos externos que o Brasil assumiu no âmbito do G-20” (segundo a declaração explicativa apresentada ao Congresso Nacional). A nova lei, se aprovada pelo Congresso Nacional, revogará a Lei n.º 6.024 e trará mudanças importantes nos processos de insolvência das instituições financeiras.
Além disso, a nova lei preverá a obrigatoriedade de planejamento, medidas preventivas e mecanismos de garantia para salvaguardar a solidez e a viabilidade das instituições financeiras.
Uma das principais medidas de estabilização propostas pelo Projeto de Lei é a utilização de mecanismos para absorção dos prejuízos e recomposição do capital da instituição. Em primeiro lugar, a decretação do Regime de Estabilização acarretaria a utilização dos recursos dos acionistas para a absorção do prejuízo da pessoa jurídica submetida ao regime, até que o capital social seja reduzido a R$ 1,00 (um real). Se essa medida não for suficiente, as Autoridades de Resolução poderiam determinar que o administrador do regime promova a conversão de determinados instrumentos em ações ou em cotas do capital social da empresa sujeita ao regime, na seguinte ordem: (i) créditos contra as pessoas jurídicas detidos pelos controladores; (ii) instrumentos de dívida autorizados a compor o capital regulamentar na forma prevista na legislação; (iii) instrumentos de dívida que contenham cláusulas de subordinação aos credores quirografários e cláusula que preveja a sua extinção ou a conversão de seu valor em capital na hipótese de decretação de regime de resolução; e (iv) demais instrumentos de dívida com cláusula de subordinação aos credores quirografários. O capital social resultante da conversão desses instrumentos seria utilizado para absorver o prejuízo remanescente em sua totalidade ou até que o capital social seja reduzido a R$ 1,00 (um real). Por fim, caso a pessoa jurídica submetida a Regime de Estabilização não se reenquadre nos requerimentos e nos limites regulamentares, após a conversão integral dos instrumentos acima, as Autoridades de Resolução poderiam determinar que o administrador do regime promova a conversão dos demais créditos contra a pessoa jurídica em ações ou em cotas de capital, no montante necessário ao seu reenquadramento.
Havia a expectativa de que o Projeto de Lei pudesse ser aprovado até o final de 2020, mas, devido à pandemia, atualmente o cronograma de aprovação do Projeto é incerto.
A mensagem importante aqui é que esse mecanismo evitaria a situação em que o investidor com títulos AT1 perdesse tudo, enquanto o acionista ainda poderia recuperar uma parte do valor da empresa.
Conclusões
Por ora, o mercado parece estar fechado para novas emissões de AT1.
Porém, dada a urgência da matéria no presente momento, o Banco Central poderia começar a pressionar o Congresso para a aprovação e conversão do PL em lei. Isso certamente será de extrema importância para permitir que os emissores brasileiros possam tranquilizar os investidores internacionais quanto à solidez do sistema financeiro local e para que novas janelas de oportunidade se abram para a colocação desses instrumentos no mercado internacional.
Principais Contatos
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[1] A Lei Complementar n.º 101 de 4 de maio de 2000, com emendas, também conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, dispõe sobre a gestão responsável das finanças públicas. Nos termos do Capítulo VI da Lei de Responsabilidade Fiscal, somente poderá ocorrer destinação de recursos públicos para o setor privado a fim de cobrir necessidades ou déficits de caixa se autorizada por lei específica. O Artigo 28 da Lei de Responsabilidade Fiscal destaca ainda que, salvo mediante lei específica, não poderão ser utilizados recursos públicos para socorrer instituições do Sistema Financeiro Nacional (ou seja, instituições financeiras em geral), inclusive por meio de operações de financiamento.
[2] Além dos procedimentos de intervenção, o Banco Central poderá também estabelecer o Regime de Administração Especial Temporária (“RAET”), que é uma forma menos restritiva de intervenção do Banco Central em instituições privadas e públicas não federais. O RAET permite ainda que as instituições a ele submetidas continuem a operar no curso regular de seus negócios. O principal objetivo do RAET é auxiliar a instituição sob administração especial a recuperar-se e evitar a intervenção e/ou liquidação. Assim, o RAET não afeta o dia a dia das operações comerciais, obrigações ou direitos da instituição financeira, que continua a operar em seu curso normal. Além disso, o RAET resulta na perda imediata do mandato dos administradores e membros do Conselho Fiscal da instituição.
[3] A Resolução CMN n.º 4.955 estabelece os critérios adotados pelo Banco Central para determinar as circunstâncias em que valores mobiliários computados como Capital Complementar ou Capital Nível 2 podem ser extintos ou convertidos em Capital Principal. Nos termos da Resolução CMN n.º 4.955, o Banco Central pode extinguir ou converter o Capital Complementar ou Capital Nível 2 em questão caso considere tais medidas necessárias: (i) para viabilizar a continuidade das operações da instituição financeira; e (ii) para mitigar riscos relevantes para os sistemas financeiro e de pagamentos do Brasil. O Banco Central poderá considerar que a continuidade das operações de uma instituição financeira esteja sob risco quando: (i) houver deterioração material (a) do valor e da liquidez de seus ativos; (b) do seu estado de solvência; ou (c) da sua credibilidade, caracterizada por redução significativa do volume de captações; ou (ii) houver elevação relevante do risco de inadimplência e, em resultado, sejam acionados os mecanismos de garantia e as salvaguardas das câmaras e dos serviços de compensação e liquidação, segundo as normas aplicáveis ao Sistema de Pagamentos Brasileiro. O Banco Central poderá verificar a existência de risco relevante ao sistema financeiro brasileiro quando a descontinuidade da instituição financeira afetada puder ensejar: (i) comprometimento das operações de outras instituições financeiras ou segmentos relevantes do mercado, que possa criar preocupações quanto à estabilidade dos sistemas financeiro ou de pagamentos; ou (ii) prejuízo relevante à disponibilidade (em níveis adequados) de serviços considerados essenciais ao sistema financeiro.
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