Bens reversíveis em contratos de concessão: a lacuna na legislação e o caso do setor de saneamento
Por Carolina Caiado e Carolina Pazzoti
Há três décadas, em 1995, entrou em vigor a Lei Federal nº 8.987, conhecida como Lei das Concessões, a qual estabeleceu as normas gerais para a concessão e permissão da prestação de serviços públicos. Fundamentada no artigo 175 da Constituição Federal, o normativo representou uma mudança significativa na forma como o Estado passou a gerir serviços públicos essenciais, ao permitir que a iniciativa privada assumisse a responsabilidade por sua operação.
Até então, tais serviços eram prestados diretamente pela Administração Pública, que enfrentava dificuldades técnicas e financeiras para investir em projetos de infraestrutura pública. Nesse contexto de incapacidade estatal de realizar os investimentos necessários à expansão e modernização da infraestrutura, a Lei das Concessões surgiu como instrumento estratégico para viabilizar a participação do setor privado na prestação de serviços públicos.
Desde então o Poder Público celebrou contratos de concessão em diversos setores estratégicos, como energia elétrica, rodovias, aeroportos e saneamento básico. Essa abertura ao setor privado permitiu avanços significativos na qualidade e na ampliação da oferta desses serviços, que passaram a contar com maior investimento e inovação tecnológica, elevando a eficiência e a qualidade do serviço prestado.
Lacuna
Apesar dos avanços significativos com as concessões, ainda se verifica uma fragilidade relevante nos contratos no que se refere aos bens vinculados à prestação do serviço público, os chamados bens reversíveis. Os bens reversíveis são os bens afetos à concessão e, portanto, necessários à manutenção do sérvio público. Ao final do contrato de concessão, tais bens são revertidos à Administração Pública, que é a titular do serviço público, a fim de garantir a continuidade da prestação do serviço.
Muitos contratos não apresentam inventários detalhados desses bens, o que dificulta tanto a identificação dos bens afetos à concessão, bem como o acompanhamento da sua destinação e conservação ao longo da concessão. Ademais, as cláusulas contratuais são pouco sistemáticas sobre a regularização imobiliária e regulatória dos imóveis em que são implantadas as infraestruturas.
Contratos de saneamento
No âmbito das concessões de serviços públicos de saneamento, verifica-se que os instrumentos contratuais usualmente se limitam a estabelecer, de forma genérica, que todos os bens integrantes do sistema de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, inclusive aqueles posteriormente implantados pela Concessionária, são considerados bens vinculados à concessão e, consequentemente, reversíveis ao poder concedente ao término do contrato.
Essa previsão, embora assegure a reversibilidade dos ativos, não oferece uma descrição precisa dos bens atrelados à concessão, o que somado a ausência de diretrizes uniformes da Agência Nacional de Águas (ANA) para a elaboração desses inventários, abre margem para divergências interpretativas e potenciais controvérsias acerca dos bens reversíveis.
Outro aspecto sensível nos contratos de concessão de saneamento refere-se à conexão de grandes consumidores à rede de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, como ocorre nos casos de condomínios e novos loteamentos. A Resolução nº 230/2024 da ANA estabelece que cabe à concessionária disponibilizar a infraestrutura necessária para a conexão desses consumidores, mas determina que as obras indispensáveis à efetiva ligação sejam custeadas pelo empreendedor.
Tais obras podem ser executadas diretamente pela concessionária ou pelo próprio consumidor, sob fiscalização da concessionária, conforme previsto no art. 25, caput e § 2º da referida norma. Dessa forma, a regulação setorial vigente impõe ao grande consumidor a responsabilidade pelo financiamento das obras de implantação de infraestruturas como Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) e Estações de Tratamento de Água (ETA), ainda que a execução possa ser conduzida pela concessionária.
Todavia, considerando que a norma da ANA possui caráter de referência e não é de observância obrigatória, verifica-se divergência na jurisprudência acerca da responsabilidade pelo custeio dessas obras. Há precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP)[1] e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ/MG)[2] que consolidam o entendimento de que os custos de implantação da infraestrutura de conexão de grandes consumidores devem ser suportados pelos próprios consumidores.
Em contrapartida, há decisões do TJ/SP[3] que atribuem à concessionária o dever de arcar com as despesas relativas à ampliação da rede de água e esgoto, ainda que inicialmente tais encargos tenham sido repassados ao particular. Essa divergência jurisprudencial evidencia a ausência de uniformidade na interpretação da matéria, gerando insegurança jurídica tanto para os consumidores quanto para as concessionárias e reforçando a necessidade de evolução normativa para garantir maior segurança jurídica aos consumidores.
A implantação de infraestruturas destinadas à conexão de grandes consumidores às redes de abastecimento de água e esgotamento sanitário suscita relevante questão quanto ao local de sua alocação, uma vez que é frequente a instalação de ETAs e ETEs em imóveis privados. Embora tais infraestruturas sejam consideradas bens afetos à concessão, e, portanto, sejam revertidas ao poder concedente ao término do contrato, os imóveis privados em que foram edificadas não se vinculam à concessão, permanecendo sob titularidade particular. Essa circunstância gera uma situação peculiar, em que bens públicos essenciais à continuidade do serviço são implantados em propriedades privadas, criando desafios para a adequada regularização imobiliária.
Diante da ausência de previsão específica nas normas de referência da ANA quanto à regularização imobiliária desses imóveis, a solução mais recorrente tem sido a doação da área ao poder concedente. Todavia, muitas leis orgânicas municipais condicionam o recebimento de bens imóveis à prévia autorização legislativa, o que dificulta ou retarda o processo de doação.
Nesse contexto, é essencial que as leis orgânicas ou normas autorizativas das concessões contemplem a possibilidade de doação de imóveis por grandes consumidores. Ainda que os contratos de concessão possam disciplinar essa questão, é fundamental que haja evolução normativa em nível setorial e municipal, assegurando maior previsibilidade e estabilidade na implantação de infraestruturas indispensáveis à expansão e manutenção dos serviços públicos de saneamento.
[1] TJ-SP – Apelação Cível: 10017408520228260169 Duartina, Relator.: Walter Exner, Data de Julgamento: 17/07/2024, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/07/2024.
[2] TJ-MG – AC: 50016307620228130687, Relator.: Des.(a) Áurea Brasil, Data de Julgamento: 06/07/2023, 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/07/2023.
[3] TJ-SP 00265818020138260007 SP 0026581-80 .2013.8.26.0007, Relator.: Neto Barbosa Ferreira, Data de Julgamento: 14/03/2018, 29ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/03/2018
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