Como ficam os contratos de infraestrutura diante de desastres ambientais cada vez mais comuns: reflexões sobre a concessão do Aeroporto Salgado Filho após chuvas no RS 28 ago 2024

Como ficam os contratos de infraestrutura diante de desastres ambientais cada vez mais comuns: reflexões sobre a concessão do Aeroporto Salgado Filho após chuvas no RS

Por Carolina Caiado e Diego Fernandes

As chuvas no estado do Rio Grande do Sul arrasaram muitas cidades, vidas e famílias. Os prejuízos são inúmeros e serão necessários anos para a efetiva reconstrução do Estado. Estima-se que a iniciativa poderá custar quase R$ 200 bilhões. Entre as infraestruturas afetadas, está o Aeroporto Salgado Filho, importante hub na região sul. O noticiário mostrou por semanas todo o estrago causado pela inundação nos saguões, pistas, interior, lojas, causando inúmeros prejuízos.

Recentemente, a ANAC aprovou o pagamento de quase R$ 500 milhões à concessionária daquele aeroporto, para fazer frente à reconstrução das infraestruturas aeroportuárias[1], custos estes de reconstrução que poderão chegar, segundo estimativas da concessionária, a quase R$ 1 bilhão. Esta situação suscita um debate relevante sobre a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão diante de um (perturbador) cenário de aumento de desastres naturais. Seriam as proteções e soluções hoje existentes suficientes para remediar os prejuízos nestes contratos e garantir serviços públicos de qualidade à população?

Seguros
No caso específico do Salgado Filho[2], a concessionária obrigou-se a contratar e manter em vigor durante todo o prazo da concessão apólices de seguro, com vigência mínima de 12 (doze) meses, que garantam a continuidade e eficácia das operações realizadas no aeroporto (cláusula 3.1.56). As apólices devem ser suficientes para cobrir diversos danos, entre os quais:

(i) danos causados às obras civis, aos equipamentos e máquinas empregados na ampliação ou reforma do aeroporto, incluindo danos decorrentes de caso fortuito ou força maior, com limite máximo de garantia no mínimo equivalente ao valor dos bens segurados; e

(ii) danos causados aos bens móveis e imóveis que integram a concessão, incluindo danos decorrentes de caso fortuito ou força maior, com limite máximo de garantia no mínimo equivalente ao valor dos bens segurados.

A concessionária também sofre prejuízos decorrentes da paralisação das atividades do aeroporto, obstando a geração de receitas da concessão, não cobertos diretamente pelos seguros contratados. Tais riscos foram assumidos pela União, o poder concedente. Os riscos extraordinários suportados pela concessionária em virtude de caso fortuito e força maior, exceto quando sua cobertura possa ser contratada junto a instituições seguradoras, no mercado brasileiro, na data da ocorrência ou quando houver apólices vigente que cubram o evento (cláusula 5.8.2), são cobertos pela União.

Ou seja, o ressarcimento por parte da concessionária partirá em parte dos seguros contratados e, eventualmente da União. Contudo, na hipótese de serem necessários pagamentos diretos do poder público para fins de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro – o que, no caso do Salgado Filho, já foi aprovado pela ANAC – a concessionária dependerá de aportes de recursos públicos, “concorrendo” com diversas outras urgências que devem ser atendidas, como ajuda humanitária, reconstrução de infraestruturas, construção de moradias, dentre tantas outras.

Ajustes
É neste contexto que se faz necessário o debate acerca de novas estruturas jurídicas para o enfrentamento de desastres e situações emergenciais. Os arranjos de alocação de riscos e contratação de seguros usualmente adotados poderão ser insuficientes no futuro.

Veja-se que os seguros que podem ser contratados pelas concessionárias, diante dos riscos crescentes da ocorrência de desastres naturais, enfrentam diversas limitações. Como exemplo, podemos citar a inviabilização da contratação de seguros pelo aumento dos custos dos prêmios, notadamente em setores em que as margens de lucro são controladas, bem como de problemas de liquidez e solvência das seguradoras em desastres de grande escala, devido ao volume elevado de reivindicações.

Além disso, diante das rápidas mudanças climáticas, a modelagem dos seguros se torna cada vez mais difícil, tornando mais complexa a precificação adequada dos seguros e a gestão eficaz dos riscos[3]. É preciso, portanto, se pensar em medidas além dos seguros para garantir que as concessionárias possam operar de forma resiliente frente aos desastres naturais.

Gestão de desastres naturais
Atualmente, não existe no Brasil, a exemplo do que ocorre em outros países, mecanismos pensados especificamente para a recuperação das infraestruturas no pós-desastre, o que incluiria a previsão da alocação de recursos para as concessionárias de serviços públicos afetadas por desastres naturais. O Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap), principal instrumento para a resposta e reconstrução de desastres, é amplamente criticado, dentre outras coisas, por estar centrado exclusivamente em recursos governamentais, deixando de explorar outras fontes de recursos, além da excessiva burocracia e demora na liberação destes recursos.

Países como México, Chile e Japão dispõem de fundos de gestão de desastres que se utilizam de fontes variadas. No Chile, por exemplo, o fundo de emergências é financiado por recursos governamentais com o apoio de seguradoras e de parcerias estabelecidas com o setor privado. O México dispõe do Fondo de Desastres Naturales (Fonden), financiado com recursos governamentais, internacionais e contribuições estaduais e municipais. O Japão adota um mecanismo mais sofisticado, combinando recursos governamentais, seguros privados e instrumentos financeiros como “títulos de catástrofe” para assegurar a disponibilidade de recursos e distribuir riscos.

Portanto, diante do aumento dos desastres naturais e dos impactos que eles têm sobre as infraestruturas, é fundamental uma reavaliação sobre a forma que o país está preparado para enfrentá-los. A dependência de seguros e fundos governamentais pode não ser suficiente em um futuro em que as mudanças climáticas se tornam cada vez mais intensas e imprevisíveis. É preciso novas abordagens que incluam a criação de fundos específicos para desastres, notadamente para a recomposição de contratos que disciplinam a prestação dos serviços públicos, possibilitando que, ao tempo dos desastres, os recursos governamentais possam estar disponíveis para uso em outras urgências decorrentes dos desastres, como o apoio às comunidades atingidas.

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[1] https://istoedinheiro.com.br/anac-autoriza-pagamento-de-r-425-mi-a-concessionaria-do-salgado-filho/

[2] ANAC. Contrato de Concessão para Ampliação, Manutenção e Exploração do Aeroporto de Porto Alegre – Salgado Filho. 28/07/2017

[3] Apesar do caráter imprevisível dos desastres, os efeitos causados pelas mudanças climáticas no Rio Grande do Sul  já haviam sido anunciados por diversas instituições que se debruçam sobre o tema, a exemplo a Nota Técnica sobre as chuvas no Rio Grande do Sul e mudanças climáticas, emitida pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais – Cemaden, órgão do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação, mas as medidas de resiliência necessárias foram negligenciadas pelo poder público.

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