Conselho de Classe X Poder Legislativo – quem deve regular as relações entre os médicos e a indústria da saúde? 17 set 2024

Conselho de Classe X Poder Legislativo – quem deve regular as relações entre os médicos e a indústria da saúde?

Autores:
Bruna B. Rocha, Sócia, Life Sciences & Healthcare
Juliana Marcondes de Souza, Associada, Life Sciences & Healthcare
Victoria Cristofaro Martins Leite, Associada, Life Sciences & Healthcare
Camila Dulcine Pessoa de Carvalho, Trainee, Life Sciences & Healthcare

 

Resolução 2.386/2024 do CFM visa regular a relação médico-indústria da saúde priorizando um vínculo transparente e confiável, mas enfrenta questionamentos sobre sua legalidade e aplicação prática.

 

Em 21 de agosto de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) promulgou a Resolução nº 2.386/2024, que foi aprovada em reunião plenária subsequente e publicada no Diário Oficial da União em 2 de setembro. A resolução, que entrará em vigor em 1º de março de 2025 (artigo 8), tem como objetivo regulamentar as relações entre médicos e a indústria da saúde (artigo 1).

Composta por oito artigos, a Resolução revela um caráter essencialmente simplista. Ela estipula que qualquer vínculo entre médicos e indústrias deve ser formalmente declarado pelo médico ao Conselho Regional de Medicina (CRM) em que estiver inscrito, no início e no término do vínculo (artigo 2).

A definição do que constitui um “vínculo” está detalhadamente descrita no artigo 3.

Além disso, a norma proíbe que os médicos recebam qualquer benefício relacionado a medicamentos, órteses, próteses, materiais especiais e equipamentos hospitalares não registrados na Anvisa, exceto quando esses benefícios forem provenientes de protocolos de pesquisa aprovados pelos Comitês de Ética em Pesquisa (artigo 4). Finalmente, a resolução exige que os médicos declarem seus conflitos de interesse em entrevistas, debates e qualquer exposição destinada ao público leigo, bem como em eventos médicos (artigo 6).

O artigo 5, por sua vez, apresenta uma aparente falha narrativa: ele estabelece que “a informação de que trata este artigo deverá ser prestada pelo beneficiário em até 60 (sessenta) dias após o recebimento do benefício”, mas, paradoxalmente, o próprio artigo 5 não aborda nenhum conteúdo específico. A interpretação

Apesar de sua abordagem relativamente concisa, a resolução busca estabelecer diretrizes éticas dentro de um sistema de comando e controle – não à toa os conflitos de interesse serão divulgados em uma plataforma dedicada pelo CFM (parágrafo único do artigo 2) –, com o intuito de garantir que as relações entre médicos e a indústria da saúde preservem a autonomia profissional do médico e a qualidade da assistência aos pacientes, conforme salientado pelo Conselheiro Relator Raphael Parente.

Embora a norma represente um avanço significativo em termos de transparência e integridade, sua eficácia é suscetível a questionamentos devido à ausência de respaldo legal robusto, visto que foi promulgada por um conselho de classe sem a necessária base legislativa.

O debate sobre a regulamentação das relações entre médicos e a indústria da saúde não é novo no Brasil e envolve questões de ordem pública que demandam tratamento legislativo.

No âmbito estadual, por exemplo, Minas Gerais já abordou o tema por meio de leis específicas (Leis 22.440/2016 e 22.921/2018), que exigem a divulgação das relações entre profissionais de saúde e a indústria, com as informações sendo publicadas em uma plataforma estadual.

No contexto federal, os Projetos de Lei 204/2019 e 7990/2017, que estão em tramitação no Congresso Nacional, visam estabelecer um marco regulatório claro e detalhado para essas relações. Esses projetos buscam garantir que todas as relações financeiras entre médicos e a indústria sejam divulgadas publicamente, aumentando a transparência e minimizando os conflitos de interesse que possam prejudicar a saúde pública.

Sob este cenário, embora a Resolução CFM 2.386/2024 tenha o objetivo de promover maior transparência nas relações entre médicos e a indústria da saúde, há que se observar a inexistência de norma legal que a embase, pondo em xeque sua legalidade, somada às dificuldades inerentes de sua implementação, a exemplo de aspectos relacionados à proteção de dados.

A principal controvérsia reside na competência dos conselhos de classe, como o CFM, para impor novas obrigações aos profissionais de saúde na ausência de uma lei específica que lhes conferisse essa autoridade. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha atribuído aos conselhos a responsabilidade de regulamentar e fiscalizar o exercício das profissões que representam, esse poder deve ser exercido dentro dos limites estabelecidos pela legislação vigente. Nesse sentido, a imposição de obrigações, como a declaração obrigatória de vínculos e a proibição do recebimento de certos benefícios, pode ser interpretada como uma transgressão desses limites, potencialmente infringindo o princípio da legalidade estrita.

Dessa forma, a discussão sobre a Resolução não se restringe apenas ao conteúdo da norma publicada pelo CFM, mas se concentra também na questão da autoridade normativa do conselho para criar e implementar tais regulamentos sem a devida base legal aprovada pelo Congresso Nacional. Nesse contexto, a tentativa de normatização pelo CFM, sem respaldo legislativo, pode ser considerada uma extrapolação de sua competência regulamentar.

Inclusive, esta questão é destacada pelo Conselheiro Relator da resolução, quando suscita a necessidade de regulação da matéria, comparando o cenário brasileiro com outros países que possuem legislações específicas sobre o tema, ressaltando o “Sunshine Act”, nos Estados Unidos, legislação que se tornou referência mundial. A similaridade entre os normativos reside no objetivo comum de aumentar a transparência e reduzir potenciais conflitos de interesse na prática médica. Entretanto, a Resolução CFM 2.386/2024 surge de um ato regulamentar de Conselho de Classe competente sem nenhum respaldo legislativo, diferentemente do que ocorre no país paradigma. Este contraste revela uma lacuna significativa: enquanto a legislação internacionalmente reconhecida conta com uma base legal sólida, a resolução brasileira ainda carece de uma fundamentação jurídica e legislativa correspondente.

Neste contexto, surge uma preocupação iminente de que a norma possa ser questionada e até mesmo contestada judicialmente, o que poderia levar à suspensão de seus efeitos antes mesmo de sua entrada em vigor. É latente a necessidade de uma regulação adequada, baseada em amplo debate legislativo, destacando a importância de se seguir o devido processo legal para assegurar a legitimidade e eficácia das normas que regem as relações entre médicos e a indústria da saúde.

Apesar do potencial reconhecimento de nulidade ante a inexistência de embasamento legal que a subsidie, a Resolução CFM 2.386/2024 deve impulsionar o desenvolvimento dos projetos de lei em tramitação, e até mesmo a propositura de novos a respeito do tema, fomentando, por conseguinte, a criação de um marco regulatório efetivo, robusto e transparente, alinhado às melhores práticas internacionais e nacionais de anticorrupção e capaz de garantir um ambiente de confiança e ética na prática médica no Brasil.

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O presente artigo descreve o pensamento atual do Campos Mello Advogados sobre estes temas e não deve ser visto como um parecer jurídico.

Campos Mello Advogados é um escritório de advocacia brasileiro que trabalha em cooperação com o DLA Piper LLP globalmente desde 2010.

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