Consórcios em licitação estão a salvo de notificação prévia ao CADE?
Com o pipeline robusto de leilões e concessões, especialmente em infraestrutura, e a consolidação da Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) nos editais, a formação de consórcios voltou ao centro das discussões entre equipes jurídica e de negócios. Nesse cenário, a pergunta recorrente entre nossos clientes CMA versa sobre a obrigatoriedade ou não de notificação desse tipo de operação ao Cade.
É importante ressaltar que não houve alteração legislativa recente que modifique a regra do art. 90, parágrafo único, da Lei 12.529/2011; a exceção de notificação à autoridade antitruste das operações de formação de consórcio única e exclusivamente com o fim de participação em licitações públicas permanece. O que mudou foi a atenção prática à linha tênue entre o consórcio estritamente adstrito ao edital ou contrato e arranjos que “transbordam” para uma JV full-function, além do uso, ainda que excepcional, do call-in do art. 88, §7º.
Entenda neste artigo como a regra é operada na prática, onde estão os limites e quais salvaguardas reduzirão risco concorrencial
Consórcios destinados a participar de licitações e a executar os contratos delas decorrentes estão excluídos de notificação prévia (Lei 12.529/2011, art. 90, parágrafo único). Isso vale inclusive quando os faturamentos do art. 88 forem atingidos. A exceção, porém, não é salvo-conduto absoluto: se o arranjo ultrapassar o perímetro do contrato, pode tornar-se notificável.
A exceção do art. 90, parágrafo único, deve ser lida como regra de eficiência voltada a preservar a celeridade e a racionalidade das contratações públicas, desde que o consórcio (e eventual SPE) permaneça estritamente adstrito ao certame e à execução do contrato — com objeto, prazo e fluxos de informação delimitados ao necessário.
Ultrapassado esse perímetro, seja pela atuação “de mercado” (full-function), pela transferência relevante de ativos ou pela coordenação para além do edital, o arranjo desloca-se ao regime geral de atos de concentração, sem prejuízo do call-in do art. 88, §7º, e da responsabilização por condutas (art. 36) quando houver abuso.
A orientação prática, portanto, é estruturar consórcios como instrumentos de execução, e não veículos de integração permanente, documentando necessidade, proporcionalidade e salvaguardas concorrenciais.
Como funciona na prática e onde estão os limites
A análise de não-enquadramento depende de balizas claras. Primeiramente, as partes devem observar se a finalidade do consórcio deve ser competir no certame e executar exclusivamente o contrato dele decorrente; a temporalidade precisa estar vinculada à vigência contratual, com extinção ao seu término; e o escopo deve restringir atividades e fluxos de informação ao estritamente necessário para atender ao contrato, com salvaguardas para evitar trocas sensíveis além desse perímetro.
O arranjo pode tornar-se notificável quando ultrapassa esses limites. À luz da Resolução CADE nº 33/2022, há risco de enquadramento se o consórcio ou a SPE transbordar o contrato — passando a atuar “no mercado”, vender a terceiros, operar por prazo indeterminado e compartilhar amplamente riscos e resultados, assumindo feições de joint venture full-function.
Também haverá notificabilidade se ocorrer transferência de ativos ou de controle entre os grupos (hipóteses dos incisos I–III do art. 90); alcançados os limiares do art. 88, a operação deve ser submetida ao CADE.
Estruturas contratuais decorrentes do consórcio (como a criação de SPEs, por exemplo) precisam ser notificadas?
Em regra, não. Se a SPE for instrumento de execução do contrato administrativo (objeto delimitado, sem atuação fora do contrato, duração atrelada à vigência), permanece dentro da exceção do art. 90, par. único.
Atenção redobrada das partes deve recair sobre o fato de a SPE assumir feições permanentes, mercadológicas (full-function) ou incorporar ativos além do necessário. Nesse caso, as novas estruturas contratuais, como a formação de SPEs, podem ser notificáveis.
Checklist breve para SPE “de projeto”
- Contrato/estatuto limitando objeto, prazo e receitas ao contrato público
- Vedação à atuação fora do escopo e previsão de encerramento ao término do contrato
- Ausência de consolidação estrutural desnecessária entre as partes
- Documentos que demonstrem a SPE como mero instrumento de execução, não veículo de integração permanente
Essential facilities e “concorrência no vs. pelo mercado”
Em setores de infraestrutura essencial — como portos, dutos, aeroportos e redes — a dinâmica competitiva tende a ocorrer pelo mercado, isto é, por meio do próprio processo de outorga e do contrato público que define quem explorará o ativo.
Nesses contextos, consórcios podem ser procompetitivos ao viabilizar projetos complexos por meio da soma de capacidades técnicas e financeiras; mas também podem reduzir a rivalidade quando reúnem grandes players que, isoladamente, teriam condições de disputar o certame.
Por isso, o principal instrumento de salvaguarda é o desenho do edital: estruturação de lotes, critérios de elegibilidade, regras claras para joint bidding e compromissos de acesso não discriminatório. E, quando surgirem abusos, o foro adequado é o de condutas (art. 36 da LDC) — investigando e sancionando práticas de fechamento ou coordenação indevida —, e não o controle estrutural prévio de consórcios licitatórios.
Guia rápido: Do’s & Don’ts para consórcios em licitações
Do’s
- Justificar necessidade: complementaridade técnica/geográfica ou insuficiência individual documentada
- Delimitar escopo: objeto, geografia, prazo e fluxos de informação apenas os indispensáveis (clean teams, dados agregados/anonimizados)
- Avaliar alternativas: subcontratação, consórcio com menos rivais diretos, inclusão de players menores
- Governança de compliance: protocolo antitruste, atas, firewalls, vedações a preços futuros e dados identificáveis de clientes fora do necessário
- Aderir ao edital e à Lei 14.133: limites de participantes, somatório de capacidades, exigências econômico-financeiras, responsabilidades
Don’ts
- Juntar “os grandes” quando cada um pode competir sozinho
- Trocar informação sensível além do necessário (preços futuros, pipeline, listas nominadas de clientes)
- Spillovers: estender coordenação a outros clientes/mercados (exclusividades horizontais, MFNs cruzadas, repartição de mercado)
- Perpetuar o arranjo além da vigência contratual ou convertê-lo em JV de mercado sem reavaliar riscos e (se for o caso) notificar
- Ignorar o edital: restrições justificadas vinculam a licitude do consórcio
Portanto, consórcios para licitar e executar contrato público (e a SPE de projeto das vencedoras) estão, em regra, dispensados de notificação prévia ao CADE (art. 90, par. único). O ponto de virada é transbordar o edital (full-function, transferência relevante de ativos/controle). Nesses casos, pode haver AC notificável (se atingidos os thresholds). Enquanto isso, o foco correto para mitigar riscos permanece: desenho competitivo do edital e compliance de condutas.
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