Consumidor já busca renegociação de imóveis comprados na planta
Por: Circe Bonatelli e Mariana Durão
O Estado de S.Paulo
Queda na renda em virtude da crise do coronavírus reacende um velho temor do mercado imobiliário: os distratos de aquisições de imóveis novos
RIO E SÃO PAULO – A queda na renda de boa parte dos brasileiros, em função da diminuição da atividade econômica frente à necessidade de medidas de isolamento para conter a epidemia do coronavírus, reacendeu no mercado imobiliário o temor de enfrentar de novo um problema antigo do setor: os distratos, jargão usado pelas empresas para devolução de imóveis comprados na planta. Esse foi o pesadelo de incorporadoras e proprietários de imóveis novos durante a recessão iniciada em 2014, quando o setor registrou recordes históricos no volume de devoluções.
Após sofrer um corte de 25% em seu salário por conta da crise do coronavírus, o economista Alex Agostini, da Austin Rating, está entre os que pediram revisão no contrato. Ele procurou a construtora Eztec para tentar postergar as parcelas de abril e de maio.
“A empresa onde trabalho reduziu os salários como forma de preservar empregos. O mercado financeiro está um caos, e as operações diminuíram”, conta Agostini. “Então pedi uma revisão do contrato à Eztec. Não estou querendo me aproveitar da situação. É uma medida preventiva”, explica. A resposta que recebeu por e-mail foi que o fluxo de pagamentos está mantido por enquanto, mas o caso será analisado.
“Até agora, o problema não se aprofundou. Mas, quanto pior a crise, pior será esse problema”, afirma o diretor de Relações com Investidores da Eztec, Emilio Fugazza. A companhia tem recebido demanda de consumidores para postergar parcelas e diluir as próximas faturas no saldo devedor, entre outras medidas para ganharem fôlego.
O plano da Eztec é atender essas demandas desde que o consumidor comprove que perdeu renda. Mas com todas as equipes de atendimento em home office, a construtora não conseguiu responder aos pedidos recentes. “Ainda precisamos de um tempo para dar andamento a essas renegociações”, disse Fugazza. “O mundo mudou numa velocidade espetacular. Há duas semanas estávamos lançando novos projetos e com vendas aquecidas”, relembra.
O presidente da Trisul, Jorge Cury, diz que identificou duas vertentes. Clientes de imóveis de alto padrão (acima de R$ 650 mil) estão buscando renegociar os pagamentos, enquanto aqueles de médio padrão (entre R$ 250 mil e R$ 650 mil) começaram a pedir o distrato.
“A amostragem é pequena, pois a crise veio há apenas duas semanas, mas a tendência é que esses distratos se acentuem. A classe média vinha se recuperando, mas muita gente vai perder emprego e profissionais autônomos vão perder renda”, estima. Em relação aos pedidos de flexibilização dos pagamentos, a intenção da Trisul é atender os consumidores. “Vamos buscar um rearranjo. E nós faremos sem multa e juros, porque temos interesse em manter a venda”, promete Cury.
Na Setin, o volume de distratos ainda é irrelevante, mas os pedidos de renegociações já começaram. “Foi pequeno em março, mas para abril as renegociações podem chegar a 10% da carteira de clientes”, conta o dono da construtora, Antônio Setin. “Se essa crise durar até maio, muita gente vai sentir isso no bolso. Aí todos nós vamos pagar caro. Não adianta o setor de construção produzir se o cliente não tem receita. Aí vai ser dramático.”
Ele afirma ainda que há uma preocupação em identificar demandas legítimas, de consumidores que de fato foram afetados pela crise. “Desta vez, entendemos que as pessoas serão afetadas de verdade. Vamos dar um espaço para que elas ajeitem sua situação. Já na crise iniciada em 2014, 80% dos distratos da Setin eram de especuladores que compraram até cinco apartamentos e decidiram desfazer o negócio quando não tiveram o retorno esperado, relembra.
Crise põe nova lei à prova
O risco de uma nova onda de revisões e cancelamentos de contratos imobiliários, que pode ser deflagrada em função do coronavírus, vai colocar em teste a nova lei dos distratos, sancionada no apagar das luzes do ano de 2018. Ela é a régua que a Justiça vai usar para decidir quem tem razão na hora de desfazer um contrato, mas pode haver algumas resistências nos tribunais para sua aplicação.
“Pela previsão de uma recessão forte deve haver um volume razoável de pedidos de distratos e aí vamos testar o judiciário na aplicação da lei dos distratos, já que os contratos discutidos na crise passada eram anteriores a 2018”, diz o advogado Theo Keiserman de Abreu, sócio do Campos Mello Advogados.
A lei foi editada com o intuito de oferecer maior segurança jurídica às incorporações imobiliárias, ao estabelecer porcentuais de retenção e devolução quando o contrato for encerrado, seja por inadimplência do comprador ou por descumprimento de obrigações pelos incorporadores. Antes dessa regulação, a jurisprudência vinha estabelecendo uma multa que variava de 10% a 25% do valor pago pelo consumidor para compensar os esforços da incorporadora na obra.
Em 2015, a recessão econômica atingiu em cheio o bolso dos brasileiros. Com os compradores sem dinheiro para arcar com as prestações, o mercado enfrentou uma avalanche de pedidos de cancelamento de contratos. Pressionadas, as incorporadoras se viram ameaçadas de ficar sem fluxo de caixa para terminar as obras. O resultado é que muitos casos foram parar na Justiça. A Lei 13.786/18 (apelidada de lei dos distratos) veio em resposta a esse quadro de insegurança jurídica vivido pelo setor imobiliário.
A advogada Ana Beatriz Barbosa, sócia do escritório Perez&Barros, explica que a nova lei estabeleceu parâmetros para a resolução dos contratos celebrados a partir de dezembro de 2018. O texto dividiu as incorporações que estavam sujeitas ao patrimônio de afetação – regime em que o dinheiro da obra é separado do patrimônio da incorporadora, assegurando a entrega da obra mesmo quando a empresa enfrenta problemas financeiros – das demais. No primeiro caso pode ser estabelecida multa de até 50% no distrato, enquanto no restante o teto da multa é de 25% do valor pago pelo imóvel.
Mas a nova lei é controversa entre juízes e desembargadores. Uma parte deles considera que o texto engessa as discussões, enquanto o melhor seria fazer a análise caso a caso. “Para alguns, ela não protege o consumidor e trata igualmente as partes desiguais”, diz Abreu. O tema foi alvo de preocupação de representantes do setor imobiliário em uma videoconferência promovida na semana passada pelo Campos Mello Advogados.
O sócio do escritório VBD Advogados e conselheiro jurídico do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon-SP), Olivar Vitale, conta que as construtoras já estão relatando interrupções no fluxo de pagamentos dos consumidores. “Quando o cliente está disposto a negociar, é a melhor situação. Ninguém quer retomar o imóvel. O problema é quando simplesmente deixam de pagar”, afirma.
Vitale observa que a existência de um fato como a crise provocada pela pandemia, dá margem para a revisão dos contratos, como alteração no fluxo de pagamentos a pedido de consumidores que comprovarem a perda da renda. Mas a lei não permite o distrato livre e sem multa. “Infelizmente, nós sabemos que haverá adquirentes procurando a justiça para rescindir. E do lado das construtoras, a defesa será difícil, pois o judiciário é paternalista e pode acabar aceitando os argumentos dos consumidores”, prevê.
Um novo elemento a considerar
A resolução de um contrato acontece quando existe um motivo justo, não apenas pela vontade de uma das partes. O contexto da pandemia, no entanto, vai adicionar um elemento novo na equação: a força maior. No caso das incorporadoras, muitas provavelmente vão deixar de entregar obras no prazo pela dificuldade de receber material, porque o Estado decretou que as construções deveriam parar ou proibiu movimentação intermunicipal, impedindo a chegada de operários aos canteiros. Já os compradores podem ficar desempregados ou ter salários reduzidos, também em razão do coronavírus.
“Claro que deverá haver uma benevolência dos juízes em interpretar isso. É bem possível que se dê maior prazo para incorporadores terminarem as obras, desde que se prove que o atraso se deu pela pandemia e não por culpa da incorporadora”, exemplifica Ana Beatriz Barbosa. A recomendação é que as incorporadoras documentem tudo, numa espécie de diário de obra. O mesmo vale para o comprador que for prejudicado pela pandemia e tiver que provar isso para se livrar das prestações.
Na visão do juiz da 1ª Vara de Recuperações e falências do Tribunal de Justiça de São Paulo, João de Oliveira Rodrigues Filho, não há possibilidade na lei do distrato de o consumidor pedir o desfazimento do contrato e ficar isento da multa. “Quem não consegue adimplir, mesmo na crise, precisa comprovar isso e buscar uma negociação direto com a construtora. Se a empresa permanecer irredutível, aí o consumidor poderia recorrer ao judiciário.”
O magistrado lembra que os pedidos em massa de distratos no passado provocaram problemas sistêmicos, quebrando empresas e deixando outros consumidores sem receber os imóveis. Portanto, a maior premissa é seguir os contratos e a legislação.
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