Criptoativos: regulação e mercado
O advento de novas tecnologias e o interesse de companhias por fontes alternativas para captação de recursos levaram à evolução dos ativos negociados no mercado e ao surgimento de instrumentos financeiros cada vez mais complexos e modernos. Nesse cenário, observou-se o crescimento da emissão e negociação de ativos digitais (ou “criptoativos”), uma forma promissora e atual para captação de recursos e investimento.
Diversas categorias e estruturas de ativos digitais surgiram nos últimos anos, tendo sido aproveitadas por empresas e investidores dos mais variados ramos. Nesse sentido, entidades reguladoras passaram a voltar sua atenção a esses ativos, para assim acompanhar o desenvolvimento de seu mercado e tutelá-lo.
Não obstante os criptoativos estejam em constante desenvolvimento, ainda não há qualquer regulamentação específica a respeito do tema no Brasil. A Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), autarquia responsável por regulamentar e fiscalizar as atividades e os serviços do mercado de valores mobiliários brasileiro, embora ainda não tenha publicado qualquer norma para disciplinar e reger os criptoativos, já se posicionou a respeito do assunto, conforme detalhado abaixo. Da mesma forma, o Banco Central do Brasil (“BACEN”), entidade reguladora e que supervisiona o Sistema Financeiro Nacional, também não emitiu qualquer ato normativo para, de fato, trazer a regulamentação para esse tipo de ativo – embora também já tenha emitido comunicados e pareceres relacionado ao tema.
Comissão de Valores Mobiliários (CVM)
O principal comunicado publicado pela CVM, emitido justamente para consolidar os entendimentos abrangidos nas demais comunicações anteriores, é o Ofício Circular 1/2021-CVM/SER. O documento – que traz diversos esclarecimentos, não apenas relacionados à emissão e negociação de criptoativos – possui uma seção contendo o posicionamento da autarquia quanto aos ativos virtuais e suas formas de oferta ao mercado.
O documento expõe que, na opinião da CVM, os ativos virtuais, a depender da estrutura econômica de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, podem se enquadrar na definição ampla de valores mobiliários, positivada no inciso IX do art. 2º, da Lei nº 6.385/1976, de 7 de setembro de 1976[1] .
Suas ofertas, conhecidas como Initial Coin Offerings (ICOs) podem ser compreendidas como captações públicas de recursos, tendo como contrapartida a emissão de ativos virtuais, também conhecidos como tokens ou coins, junto ao público investidor.
Desta forma, no processo de estruturação atual de um ativo digital, é de suma importância que seja evitada a caracterização de um valor mobiliário, para que o ativo possa ser emitido e negociado sem que haja necessidade de observância da legislação relacionada. Caso contrário, o ativo será considerado como valor mobiliário pela CVM e ficará sujeito a processos de registro de oferta e demais exigências regulatórias da autarquia para emissão e negociação de valores mobiliários.
De acordo com a CVM, na emissão de um criptoativo que se enquadre na definição de valores mobiliários, “estaria atraída a competência da CVM e nesse caso, a captação pública de recursos por meio da oferta de tais tokens deve ser submetida ao rito da Instrução CVM nº 400/2003 ou, alternativamente, à Instrução CVM nº 588/2017”[2].
BANCO CENTRAL DO BRASIL
A última movimentação formal do BACEN no tocante aos criptoativos é mais antiga do que comparado à CVM.
Por meio do Comunicado n° 31.379, de 16 de novembro de 2017 (“Comunicado nº 31.379”), a autarquia emitiu alguns esclarecimentos acerca de sua competência na regulamentação dos ativos digitais, além de informar que, até aquele momento, não havia qualquer norma no Brasil que disciplinasse sua emissão e negociação – o que não foi alterado.
De acordo com o Comunicado nº 31.379, “as empresas que negociam ou guardam as chamadas moedas virtuais em nome dos usuários, pessoas naturais ou jurídicas, não são reguladas, autorizadas ou supervisionadas pelo Banco Central do Brasil. Não há, no arcabouço legal e regulatório relacionado com o Sistema Financeiro Nacional, dispositivo específico sobre moedas virtuais. O Banco Central do Brasil, particularmente, não regula nem supervisiona operações com moedas virtuais”.
A falta de supervisão por parte do BACEN é justificada, no próprio Comunicado nº 31.379, sob fundamento de que, embora os ativos digitais tenham sido tema de diversos debates pelas autoridades financeiras/monetárias internacionais, pouquíssimos reguladores identificaram a necessidade de regulamentação desses ativos – o que também não foi apurado no Brasil, tendo em vista que “por enquanto, não se observam riscos relevantes para o Sistema Financeiro Nacional”.
Ademais, conforme publicação das “Estatísticas do Setor Externo”, feita em agosto de 2019 – documento em que são detalhados os balanços e posições monetárias interacionais do país – o BACEN oficialmente reconheceu os criptoativos como “ativos não financeiros produzidos” e a mineração de criptoativos como um “processo produtivo”. Nesse sentido, operações envolvendo criptoativos passaram a integrar a balança comercial brasileira, e as estatísticas nacionais de exportação e importação de bens começam a incluir compras e vendas de ativos digitais.
MERCADO DOS CRIPTOATIVOS NO BRASIL
Em termos financeiros, o Brasil representa, no ano de 2021, cerca de 2% do mercado mundial, que foi de R$ 5,4 trilhões em 2021, segundo o CoinMarketCap, principal monitor global desse ambiente.
Não obstante o mercado de criptoativos seja, a princípio, descentralizado e independente de qualquer entidade reguladora, vale destacar que diversos ativos negociados nesse sistema podem ser apenas acessados e/ou estruturados pelo auxílio de intermediários nacionais ou estrangeiros. Assim, grande parte dos investidores de criptoativos brasileiros contam com o auxílio de corretoras – algumas delas já especializadas nesse tipo de ativos.
Outra possibilidade para acesso a esses ativos é por meio de fundos de investimento. Esses veículos financeiros são amplamente regulamentados pela CVM e BACEN e estão sujeitos a diversas obrigações regulatórias que delimitam a forma como sua exposição a criptoativos pode ser realizada.
De acordo com o Art. 95, §1º, da Instrução CVM nº 555, de 17 de dezembro de 2014 (“ICVM 555”), só podem compor a carteira de fundos de investimento ativos financeiros que sejam registrados em sistema de registro e objeto de custódia, junto a instituições devidamente autorizadas pelo BACEN ou pela CVM. Nesse sentido, por não serem a princípio considerados valores mobiliários, os criptoativos não são submetidos a qualquer espécie de registro junto às autarquias. Isso impediria seu investimento por parte de fundos brasileiros.
Entretanto, a partir de 2017/2018, algumas gestoras passaram a utilizar uma estratégia alternativa para possibilitar a exposição de seus fundos aos criptoativos. De acordo com o Art. 98 da ICVM 555, é permitido o investimento por fundos em ativos financeiros no exterior, desde que previsto em seu regulamento e que os ativos investidos cumpram, pelo menos, uma das seguintes condições: (i) sejam registrados em sistema de registro, objeto de escrituração de ativos, custódia ou depósito central, em todos os casos, por instituições devidamente autorizadas em seus países de origem e supervisionados por autoridade local reconhecida; ou (ii) tenham sua existência diligentemente verificada pelo administrador ou pelo custodiante do fundo, e desde que tais ativos sejam escriturados ou custodiados, em ambos os casos, por entidade devidamente autorizada para o exercício da atividade por local reconhecida.
Assim, fundos brasileiros passaram a realizar investimentos, por exemplo, em cotas de outros fundos ou em derivativos emitidos e negociados no exterior, que, por sua vez, tinham algum tipo de exposição aos criptoativos.
Em vista dessa movimentação, a CVM publicou, 19 de setembro de 2018, o Ofício Circular nº 11/2018/CVM/SIN, em que declarou ser regular o investimento indireto em criptoativos, que vinha sendo realizado por diversos fundos de investimentos, além trazer algumas recomendações para tais investimentos, sobretudo para resguardar a segurança financeira desses veículos.
Importante ressaltar, todavia, que a depender da modalidade de investidor, os fundos terão sua exposição indireta às criptomoedas no exterior limitada. De acordo com o Art. 101 da ICVM 555, os fundos deverão observar os seguintes limites de concentração: (i) ilimitado, para investidores profissionais; (ii) 40%, para investidores qualificados, exceto se cumprirem algumas condições, caso em que a concentração também será ilimitada; e (iii) 20% para investidores comuns.
Uma alternativa encontrada pelas gestoras brasileiras para oferecerem a seus cotistas a possibilidade de investimento em ativos digitais foi a criação de fundos de índices que repliquem a variação de determinado(s) criptoativo(s).
Normalmente, a estruturação desses fundos é feita em conjunto com gestora sediada no exterior. Para tanto, a gestora estrangeira obtém de alguma entidade administradora (ex. Nasdaq) a licença para utilizar algum índice vinculado a criptomoedas (ex. Nasdaq Crypto Index). Assim, a gestora estrangeira firma sublicenciamento com gestora brasileira, para permitir que esta também possa estruturar fundos atrelados ao índice licenciado. Assim, com a aprovação da CVM, a gestora brasileira poderá operacionalizar fundos cujo valor das cotas esteja diretamente vinculado aos criptoativos abrangidos pelo índice (Bitcoin, Ethereum, etc.).
PROJETOS LEGISLATIVOS
No dia 26 de abril de 2022, foi aprovado pelo Plenário do Senado Federal o texto substitutivo do Projeto de Lei nº 4.401 (“PL nº 4.401”), que visa traçar as diretrizes para regulamentação de criptoativos no Brasil, de forma a definir com maior precisão as características que definem esse tipo de ativo e, conjuntamente, alterar normas já existentes (notadamente, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e as Leis nºs 7.492, de 16 de junho de 1986, e 9.613, de 3 de março de 1998), objetivando adaptar a legislação vigente para que passem a considerar a existência e regulamentação dos criptoativos.
Vale destacar, contudo, que embora o PL nº 4.401 represente o primeiro passo para a regulamentação dos criptoativos no Brasil, o projeto ainda trata o tema de forma incipiente, e poucas bases regulatórias foram efetivamente definidas. O artigo 2º da atual redação determina, por exemplo, que “prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no país mediante prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública Federal”. Todavia, não foram definidos maiores detalhes quanto aos procedimentos e exigências para a concessão de tais autorizações.
O PL nº 4.401 encontra-se sob análise da Câmara dos Deputados, que apreciará as medidas promovidas ao texto do projeto pelo Senado Federal, materializado no texto substitutivo definido pela Emenda nº 6-PLEN. Após eventual aprovação da Câmara dos Deputados, o projeto será encaminhado ao Palácio do Planalto para que receba a sanção do Presidente da República.
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[1] Diz a Lei que são valores mobiliários, além daqueles taxativamente ali expressos: “quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”.
[2] Para ilustrar um caso concreto da fiscalização da CVM na emissão de ativos digitais, em 27/10/2020, a autarquia multou a Iconic Intermediação de Negócios e Serviços Ltda., no valor de R$ 776 mil, pela emissão não autorizada de valores mobiliários (PAS CVM Nº 19957.003406/2019-91). Em sua análise, a CVM valeu-se da definição contida no inciso IX do art. 2º, da Lei nº 6.385/1976 – para tanto, realizando os seguintes questionamentos: “(i) Há investimento?; (ii) Esse investimento é formalizado por um título, ou por um contrato?; (iii) O investimento é coletivo?; (iv) Alguma forma de remuneração é oferecida aos investidores?; e (v) A remuneração oferecida tem origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros?”. Tendo em vista que a resposta para todos os questionamentos acima foi positiva, o token emitido pela empresa foi considerado como sendo valor mobiliário, e a emissão foi cancelada.
Principais Contatos da área Bancária:
Roberto Vianna do R. Barros, sócio
Lucas Bernabé, associado
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