Decretos do executivo alteram Marco Legal do Saneamento: entre avanços e retrocessos, novos investimentos estão assegurados 27 abr 2023

Decretos do executivo alteram Marco Legal do Saneamento: entre avanços e retrocessos, novos investimentos estão assegurados

por Carolina Caiado e Marjorie Iacoponi

O setor de saneamento básico enfrenta um momento desafiador. No último dia 5, o presidente Lula publicou dois decretos, promovendo mudanças polêmicas no Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007), reformado há menos de 3 anos com a promulgação da Lei Federal nº 14.026/2020.

Decreto Federal nº 11.466/2023 traz novas regras para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de saneamento básico. Já o Decreto Federal nº 11.467/2023 atualiza as regras sobre a prestação regionalizada dos serviços de saneamento, bem como o apoio técnico e financeiro da União ao setor.

Alterações
● novo prazo para comprovação de capacidade econômico-financeira de prestadoras
Entre as principais mudanças, destaca-se a nova metodologia para que as atuais empresas prestadoras dos serviços públicos de abastecimento de água ou esgotamento sanitário comprovem capacidade econômico-financeira para cumprir metas de universalização nos municípios que atuam.

As prestadoras que mantêm contratos de concessão e de programa, em sua maioria estatais, têm prazo até dezembro de 2023 para encaminhar aos respectivos reguladores locais o requerimento de comprovação dessa capacidade. Com as novas regras, o Governo facilitou a permanência das estatais que não conseguiram cumprir essas metas no passado.

  • prazo estendido para regularização de contratos
    As novas regras também permitiram que os contratos irregulares ou de natureza precária possam ser regularizados até dezembro de 2025 (art. 1º, § 2º do Decreto Federal nº 11.466/2023) e, com isso, os municípios podem ter acesso aos recursos federais para viabilização dos projetos.
  • manutenção de contratos sem licitação
    Os decretos dão aval à conduta que o Marco Legal do Saneamento visa proibir: a permanência de estatais sendo contratadas por entes federados para prestar os serviços diretamente, sem licitação.
  • extinção de limite à participação da iniciativa privada
    Os novos textos estabelecem que não há limite de valor do contrato para celebração de parcerias público-privadas (PPPs). Antes, havia um limite de 25% do valor do contrato das estatais para celebrar parcerias com os investidores privados (art. 11- A da Lei Federal nº 14.026/2020).

Como fica o setor
Há tempos já se discute a necessidade de reduzir a ineficiência de muitas estatais e de evoluir com as metas de universalização. Os decretos do Executivo vão na contramão desse objetivo. As novas regras são preocupantes, pois a flexibilização autorizando a prestação de serviços de saneamento por estatais, sem licitação, é um retrocesso ao Marco Legal do Saneamento.

A medida garante a hegemonia das estatais prestando o serviço, o que não é benéfico para os usuários, pois muitas estatais não têm capacidade econômico-financeira robusta para investir na expansão da rede de esgotamento.

Nesse cenário, não há incentivo para os municípios e estados conduzirem licitação para contratação de parceiros privados no mercado, pois é mais cômoda a manutenção dos contratos com as estatais que já prestam serviços na região do que investimento de tempo e recursos – humanos e financeiros – na instrução de um processo licitatório para contratar empresas com capital 100% privado.

Para os investidores privados, a boa notícia é o fim do limite de valor do contrato para celebração de PPPs. Com a nova regra, o Governo quer ampliar a participação da iniciativa privada e atrair novos investimentos para o setor.

Ainda que as estatais se mantenham por um período adicional prestando os serviços, a tendência é que tais estatais busquem amparo da iniciativa privada para a prestação de parcela significativa desses serviços. Um exemplo disso foi a licitação para concessão de serviços públicos de saneamento conduzida pelo Estado do Rio de Janeiro em 2021, por meio do qual a estatal CEDAE continuou responsável pela produção de água, enquanto a concessionária ficou responsável pelos serviços de distribuição da água produzida pela CEDAE e pelo tratamento de esgoto.

Conflitos
Do ponto de vista jurídico, eis a crítica: tais mudanças no Marco Legal do Saneamento poderiam ter sido implementadas por decreto emanado pelo Poder Executivo? Não demandariam aprovação legislativa do Congresso? Este, inclusive, é um dos argumentos do Partido Novo, que ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 1055 no Supremo Tribunal Federal (STF), objetivando a invalidação dos Decretos n. 11.466/2023 e 11.467/2023.

O partido alega que os Decretos inovam o ordenamento jurídico brasileiro e distorcem, se distanciam e são dissonantes da lógica estabelecida pelo Marco Legal do Saneamento Básico.

O Partido Liberal, por sua vez, ajuizou a ADPF n. 1057 também em face dos Decretos 11.466/2023 e 11.467/2023, argumentando inovação e extrapolação do poder regulamentar do Executivo, violando, assim, o princípio da legalidade e da separação de poderes. Também se ponderou que direitos fundamentais, a exemplo do acesso à saúde e da dignidade da pessoa humana, foram afetados.

Tendo em vista a relevância do tema, o STF designou a realização de audiência preliminar de conciliação. Após a audiência, o Supremo ouvirá todos os envolvidos para decidir sobre o pedido liminar constante nas ADPFs, referente à sustação imediata dos efeitos dos Decretos.

A audiência de conciliação será realizada no dia 23 de maio e contará com a presença do Advogado-Geral da União, do Procurador-Geral da República, de representante da Agência Nacional de Águas (ANA), do Presidente do Partido Novo, de representante da Associação Brasileira de Direito de Infraestrutura (ABDInfra) e de representante da Associação Brasileira de Empresas Estaduais de Saneamento (AESB).

Há várias críticas aos decretos mas, na nossa visão, eles não reduzem as oportunidades de investimento privado no setor de saneamento. O setor continua carente de investimentos pois, no geral, as estatais e os entes federativos têm pouca capacidade de investimento para atingir as metas de qualidade e universalização dos serviços.

Acompanharemos quais efeitos os decretos produzirão, tanto para os usuários quanto para a iniciativa privada, que deseja investir nos projetos futuros.

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