Governo de São Paulo define regras para interações com setor privado: saiba o que pode (e o que não pode) no relacionamento entre empresas e Estado
Por Carolina Caiado e Ricardo Caiado
O Governo do Estado de São Paulo reforçou suas políticas de transparência e moralidade administrativa com a promulgação do Decreto 69.475/2025[1], publicado em abril. A norma, que entra em vigor em agosto, introduz diretrizes específicas para a divulgação de compromissos públicos e regulamenta a concessão de hospitalidades, brindes e presentes a agentes públicos da Administração Pública Estadual.
O Decreto integra o Plano Anticorrupção instaurado pelo Governo, que busca estruturar e organizar ações para aprimorar os sistemas de mecanismos de prevenção, detecção e responsabilização por atos de corrupção no âmbito do Poder Executivo. O plano vai além da punição posterior às irregularidades, concentrando-se principalmente na criação de medidas preventivas que impeçam práticas inadequadas.
Compromissos Públicos e Representação Privada de Interesses
Um dos méritos do Decreto é apresentar definições do que sejam “compromissos públicos” e “representação privada de interesses”, garantindo transparência e segurança jurídica na interface público-privada.
Segundo o texto, os compromissos públicos são atividades das quais o agente público participa em razão do cargo, função ou emprego público que ocupe. Entre elas destacamos: audiências públicas, eventos, reuniões de trabalho, solenidades, congressos, seminários, cursos, conferências, despachos internos e representação institucional, nos termos definidos pelo art. 2º, inciso II, do Decreto.
A nova redação determina ainda que compete à Controladoria Geral do Estado instituir, manter e administrar um sistema eletrônico destinado ao registro, bem como à divulgação da agenda de compromissos públicos dos agentes abrangidos pela norma. O sistema deverá contemplar informações precisas e detalhadas, compreendendo a descrição sucinta do assunto tratado, a especificação do local de realização, bem como a data e o horário de cada compromisso. A Controladoria Geral do Estado, de acordo com o Decreto, será responsável por monitorar a implementação das medidas e poderá realizar auditorias periódicas para verificar o cumprimento das normas.
Segundo o documento, os agentes públicos do alto escalão da Administração Pública estadual devem divulgar agenda de compromissos públicos. Entre tais agentes incluem-se Secretário de Estado, Procurador Geral do Estado e Controlador Geral do Estado; Superintendente, Presidente ou autoridade equivalente no âmbito da Administração Pública indireta; e Secretário Executivo, Subsecretário, Chefe de Gabinete e dirigentes de unidades de níveis hierárquicos equivalentes, por força do art. 3º do Decreto.
A representação privada de interesses foi definida pelo Decreto como “interação entre agente público e agente privado destinada a influenciar processo decisório da Administração Pública estadual, conforme interesse próprio ou de terceiros, individual, coletivo ou difuso”, especialmente para:
(i) formulação, implementação, modificação e avaliação de estratégia de Governo, de política pública ou de atividades a ela correlatas;
(ii) edição, alteração ou revogação de ato normativo;
(iii) planejamento de licitações e contratos;
(iv) edição, alteração ou revogação de ato administrativo, conforme previsto no art. 2º, inciso III.
Trata-se justamente das interações que permitem ao setor privado apresentar seus produtos, demonstrar a inadequação de determinado ato normativo a um segmento da indústria ou pleitear a correção de políticas públicas conforme as necessidades de determinado setor. Essa interação também é conhecida como advocacy, sobretudo quando abrange interesses coletivos e difusos. Tais interações entre público e privado não só são válidas como necessárias, pois o setor privado é um parceiro relevante e estratégico para sugerir novas opções de produtos e serviços ao Estado. Os departamentos de suprimentos da Administração Pública precisam de informações de mercado para planejarem licitações e contratações públicas, o que inclusive foi expressamente previsto na Lei Federal nº 14.133/2021– a Nova Lei Geral de Licitações.
O Decreto também ressalva as situações que não são consideradas “representação privada de interesses”, tais como atendimento a usuários de serviços públicos; comercialização de serviços e produtos pelas próprias entidades da Administração Pública; prática de atos no âmbito jurisdicional ou administrativo; prática de atos com a finalidade de expressar opinião técnica ou de prestar esclarecimentos solicitados por agente público; exercício dos direitos de petição ou de obtenção de certidões junto ao Poder Público, nos termos do art. 5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal, entre outras situações enumeradas no art. 2º, § 2º, do Decreto.
Como empresas devem agir na interação com os agentes públicos do Estado de São Paulo?
Para o setor privado, o reforço da integridade e transparência trará mais segurança jurídica para a realização de negócios. A empresa que tiver interesse em apresentar projetos, pitches, propostas, deverá solicitar as interações que configurem “representação de interesses privados” pelos canais oficiais, abordando o agente público no telefone e e-mail oficiais. O uso de e-mails pessoais, telefone e WhatsApp deve ser evitado, pois não permite o rastreio das informações pelos sistemas de controle estatal.
Nesse contexto, as empresas que possuem interface com o Governo Estadual devem revisar suas diretrizes sobre interações com agentes públicos estaduais. Tal revisão deve contemplar a formalização de políticas internas que proíbam o uso de canais informais, a exigência de registro adequado das interações e o treinamento das equipes expostas às novas regras.
Além disso, o Decreto estabelece regulamentação específica sobre hospitalidades, brindes e presentes oferecidos por agentes privados aos servidores públicos, em decorrência das reuniões realizadas. O recebimento desses itens de hospitalidade somente será permitido mediante autorização do respectivo órgão ou entidade, observando-se critérios objetivos como o interesse público, as competências institucionais e os potenciais riscos à integridade e imagem institucional.
Nesse mesmo sentido, a oferta de brindes deve ter valor inferior a 1% (um por cento) do subsídio mensal do Governador do Estado, que corresponde a R$ 34.572,89[2]. Portanto, o valor do brinde não pode superar a quantia de R$ 345,00 (trezentos e quarenta e cinco reais). O brinde é definido no Decreto como “item de baixo valor econômico e distribuído de forma generalizada a título de cortesia, propaganda ou divulgação habitual”. Trata-se de itens como garrafas térmicas, cadernos, papelaria, camisetas com o logo das empresas, que usualmente são distribuídos como cortesia.
As políticas de brindes, presentes e hospitalidades das empresas devem ser revistas à luz dessas novas regras, prevendo limites objetivos, exigência de aprovação prévia e restrição à entrega de presentes a agentes públicos estaduais. Os controles sobre terceiros que atuem em nome da empresa junto ao Estado, como consultores e representantes comerciais, também devem ser revisitados. Tais terceiros devem estar contratualmente obrigados a observar o Decreto.
Por outro lado, o Decreto impõe proibição absoluta ao recebimento de presentes por agentes públicos provenientes de particulares, independentemente da existência de interesse direto ou indireto em decisões sob sua responsabilidade ou de colegiados dos quais participem.
As normas podem parecer rígidas à primeira vista, mas têm o benefício de especificar os caminhos que o setor privado deve percorrer para tratar de seus interesses, projetos e negócios, trazendo segurança jurídica e transparência nas interações entre setor privado e poder público.
Para as empresas com programas de integridade consolidados, o Decreto representa uma oportunidade de fortalecer a governança e demonstrar compromisso com condutas éticas nas relações institucionais. A atualização dos programas com base nas novas regras não só reduz riscos de responsabilização, como também contribui para a construção de uma cultura de compliance mais madura, em linha com as expectativas regulatórias atuais.
Toda organização que tem como cliente o poder público possui inúmeras dúvidas de como acessar agentes públicos para apresentar produtos, pitches de venda ou sugerir novas tecnologias que possam ser incluídas no planejamento de licitações. Com o Decreto, o Governo de São Paulo atua para sanar possíveis lacunas sobre o tema e restringe a possibilidade de interpretações distorcidas acerca das relações éticas com o Estado. A iniciativa é positiva e deveria ser adotada pelos demais estados brasileiros.
Seguimos acompanhando normas e fatos que impactam as relações entre parceiros públicos e privados, mantendo você atualizado sobre esses e outros temas nas próximas edições da P&N.
[1] DECRETO N° 69.475, DE 10 DE ABRIL DE 2025 – Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Acesso em 29/07/2025
[2] Portal da Transparência do Estado de São Paulo. Acesso em 29/07/2025.
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