Inadimplência do poder público na nova Lei de Licitações: texto incorpora decisões do TCU e STJ sobre o tema, mas não prevê rescisão unilateral para particulares 7 mar 2024

Inadimplência do poder público na nova Lei de Licitações: texto incorpora decisões do TCU e STJ sobre o tema, mas não prevê rescisão unilateral para particulares

por Carolina Caiado

Atrasos na aprovação de medições, parcelas de pagamentos e até mesmo inadimplemento total das obrigações de pagamento por parte do poder público, em contratos administrativos, são relatos frequentes de clientes cujos “clientes” são entidades públicas.

A Lei Federal nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, aprimorou a base legal da relação contratual entre poder público, seus fornecedores e prestadores de serviços. Contudo, há poucas mudanças no que se refere às prerrogativas dos particulares nos casos em que o cliente público incorre em inadimplemento de obrigações, sobretudo quando este deixa de pagar.

Mudanças pontuais
Desde 1º de janeiro, quando a nova lei entrou plenamente em vigor, as hipóteses em que o particular contratado terá direito à extinção do contrato administrativo foram ampliadas. Os casos de atrasos no cumprimento de obrigações pecuniárias foram desdobrados nos incisos III e IV do art. 137, § 2º, da lei:

Art. 137, § 2º, III: repetidas suspensões que totalizem 90 dias úteis, independentemente do pagamento obrigatório de indenização pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas.

Art. 137, § 2º, IV: atraso superior a 2 meses, contado da emissão da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela Administração por despesas de obras, serviços ou fornecimentos.

Ainda na vigência da revogada Lei Federal nº 8.666/93, o inadimplemento de obrigações de pagamentos, por parte do poder público, já garantia ao contratado o direito à extinção do contrato, nos termos do art. 78, XV, da lei revogada. Nestes casos, embora tivesse direito à rescisão do contrato, ao contratado a lei não conferia a possibilidade de extingui-lo unilateralmente.

Para encerrar a relação contratual, restava ao contratado obter a anuência do poder público e extingui-la amigavelmente, por acordo entre as partes, ou buscar no judiciário decisão que o autorizasse a fazê-lo. Ou seja, o contratado parava de receber seus pagamentos, mas não tinha autorização legal para rescindir o contrato unilateralmente.

A situação pouco mudou com o novo texto. O art. 138 manteve as hipóteses de rescisão do contrato, quais sejam: (i) por ato unilateral da administração pública; (ii) consensual, por acordo entre as partes, por conciliação, por mediação ou por comitê de resolução de disputas, desde que haja interesse da administração; e (iii) determinada por decisão arbitral, em decorrência de cláusula compromissória ou compromisso arbitral, ou por decisão judicial.

Rescisão unilateral segue fora da lei
A linguagem foi atualizada para incluir os mecanismos de conciliação, medição e arbitragem em vigor no Brasil há muitos anos, mas não houve inclusão de qualquer hipótese de rescisão unilateral por parte do contratado nos casos em que o poder público não cumprir suas obrigações de pagamento.

O art. 137, § 3º, II, da nova lei garantiu aos contratados o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas contratualmente até a normalização da situação, admitindo o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato em casos excepcionais previstos na própria lei, a exemplo do caso fortuito e força maior.

O direito à suspensão das obrigações do contratado, em casos de inadimplemento das obrigações de pagamento do poder público, já era reconhecido em decisões do Tribunal de Contas da União – TCU e do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Como exemplo, a ementa* de decisão do STJ que reconheceu a fornecedor de alimentação a hospitais o direito de suspender a prestação de serviços, em caso de atraso no pagamento dos serviços por período superior a 90 dias. O Tribunal entendeu que o contratado poderia licitamente suspender a execução dos serviços.

Ainda que a nova lei tenha incorporado os posicionamentos do TCU e STJ, garantindo ao contratado o direito à extinção do contrato, trata-se de solução parcial para a questão. Suspender a execução não resolve por completo a situação do contratado, pois este permanecerá no vínculo, tendo que manter mobilizadas equipes, estoques, equipamentos.

Ademais, não se trata de direito absoluto, pois tal prerrogativa é expressamente retirada do contratado nos casos de calamidade pública, de grave perturbação da ordem interna ou de guerra, conforme dispõe o art. 137, § 3º, I da nova lei. Ou seja, nestas hipóteses o contratado deverá socorrer o Estado e manter o fornecimento ou a prestação de serviços.

Avanço tímido
Por essa razão, os mecanismos de proteção do contratado para os atrasos no pagamento por parte do poder público pouco avançaram. Nestes casos, caberá ao contratado buscar a rescisão consensual do contrato, o que pressupõe a anuência da contraparte pública ou optar pela suspensão de suas obrigações até que o poder público retome seus pagamentos, conforme tratado acima.

A nova lei perdeu a oportunidade de aprimorar os mecanismos de proteção do contratado em situações de atraso nos pagamentos do poder público, sobretudo porque passou a permitir contratos de longo prazo. A lei permite, em casos específicos, contratos com prazo de vigência de até 35 anos. Em relações contratuais longevas cuja remuneração do particular depende exclusivamente dos pagamentos públicos, são necessários arranjos de garantias do cumprimento de obrigações pecuniárias por parte do poder público, a exemplo do que ocorre nos contratos de parceria público-privadas.

Sem estes mecanismos de proteção ou a possibilidade de rescindir unilateralmente o contrato administrativo, é provável que o risco de inadimplemento do poder público seja transferido para o preço do contrato, tornando os fornecimentos e prestações de serviços mais onerosos à administração pública. O tempo e a prática mostrarão como o risco de inadimplemento do poder público será refletido nos contratos.

* ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. FORNECIMENTO DE ALIMENTAÇÃO A PACIENTES, ACOMPANHANTES E SERVIDORES DE HOSPITAIS PÚBLICOS. ATRASO NO PAGAMENTO POR MAIS DE 90 DIAS. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO. ART. 78, XV, DA LEI 8.666/93. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DO CONTRATO. DESNECESSIDADE DE PROVIMENTO JUDICIAL. ANÁLISE DE OFENSA A DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL: DESCABIMENTO. INFRINGÊNCIA AO ART. 535 DO CPC. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 126, 131, 165 E 458, II, DO CPC: INEXISTÊNCIA.

  1. Descabe ao STJ, em sede de recurso especial, analisar possível ofensa a dispositivo constitucional. 2. Incide a Súmula 284/STF se o recorrente, a pretexto de violação do art. 535 do CPC, limita-se a fazer alegações genéricas, sem indicação precisa da omissão, contradição ou obscuridade do julgado. Inúmeros precedentes desta Corte. 3. Acórdão suficientemente fundamentado não contraria os arts. 126, 131, 165 e 458, II, do CPC. 4. Com o advento da Lei 8.666/93, não tem mais sentido a discussão doutrinária sobre o cabimento ou não da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a Administração, ante o teor do art. 78, XV, do referido diploma legal. Por isso, despicienda a análise da questão sob o prisma do princípio da continuidade do serviço público. 5. Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito. 6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido.

(STJ – REsp: 910802 RJ 2006/0273327-0, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 03/06/2008, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/08/2008)

Comentários