Licença ambiental: é possível transferir a titularidade? 4 jun 2025

Licença ambiental: é possível transferir a titularidade?

Por Carolina Caiado, Fábio di Pietro e João Pesciotto

Avança no Congresso Nacional a votação do PL nº 2.159/2021, substituto do PL n° 3.729/2004,[1] que objetiva disciplinar o licenciamento ambiental. O texto original e as diversas emendas ao projeto vêm causando amplos debates acerca do equilíbrio entre a desburocratização e uniformização de procedimentos e a eficiente e necessária proteção ao meio ambiente.

Ponto que nos parece pouco tratado nas discussões é a disciplina da transferência da titularidade de licenças ambientais, especialmente em transações societárias que impliquem venda de ativos já devidamente licenciados. A pergunta é recorrente entre gestores de negócios dessa natureza, mas a resposta não está regulada em lei. O tema é tratado em atos normativos infralegais e de forma esparsa nos diversos entes federativos.

Afinal, é possível transferir a titularidade da licença?

O licenciamento ambiental é o procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, conforme define o art. 2º, inciso I, Lei Complementar Federal nº 140/2011. Não se trata, portanto, de procedimento destinado a autorizar pessoas jurídicas a funcionarem, ou seja, o objeto tutelado pela atuação estatal é a atividade ou empreendimento operado pela pessoa jurídica titular da licença.

Dessa forma, se há a venda de determinado ativo, já devidamente licenciado, não deveria haver a necessidade se iniciar novo licenciamento ambiental apenas em razão da troca de titularidade, da propriedade do ativo licenciado. Trata-se dos casos em que não há venda da sociedade titular da licença ambiental, mas a venda de um ativo, cuja operação demanda prévio licenciamento ambiental.

Havendo a expressa concordância do novo titular com todos os termos e condicionantes do licenciamento ambiental vigente, sua transferência nos parece lícita e viável. Nesse contexto,  aplica-se também      o princípio da eficiência, no qual devem se pautar a administração pública encarregada do licenciamento ambiental por força do art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988.

Entendimento Brasil afora

Na ausência de norma que uniformize as regras de transferência de titularidade de licença ambiental, o tema é tratado em atos normativos infralegais e de forma esparsa nos diversos entes federativos do Brasil.  Tribunais estaduais pátrios, em inúmeras oportunidades,      já se posicionaram favoravelmente à transferência ou alteração de titularidade das licenças ambientais emitidas por órgãos de proteção ambiental estaduais, também discutindo acerca da sua natureza, no sentido de que o objeto do licenciamento é a atividade desenvolvida e não a pessoa jurídica ou indivíduo que a desenvolve. Assim entenderam a Advocacia Geral da União[2] e o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná[3], que, em síntese, decidiu que “A licença ambiental é vinculada à atividade desenvolvida e ao empreendimento, não sendo intuiu personae, ou seja, personalíssima ao titular originário”.

O Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas – TJAM – também já se manifestou no mesmo sentido, declarando que: (i) o licenciamento ambiental não é personalíssimo, não guardando relação com a pessoa que solicitou o licenciamento, mas sim a atividade; (ii) a transferência de titularidade das licenças ambientais não oferece risco ao meio ambiente, vez que as obrigações ambientais permanecem inalteradas. Assim: “1. Ressalta-se que o licenciamento ambiental, da forma como é previsto no nosso ordenamento jurídico, não é personalíssimo, ou seja: não há qualquer relação com a pessoa natural ou jurídica que requereu a licença no órgão ambiental; 2. A transferência da titularidade da licença ambiental não traz qualquer risco ao Meio Ambiente, tendo em vista que as obrigações ambientais, em especial as condicionantes acordadas, não serão alteradas; 3. Ante a ausência de prejuízo ambiental”.[4]

Também é válido ressaltar que em outros estados, como é o caso de Santa Catarina, a possibilidade de transferência das licenças ambientais é uma realidade já regulada pelos órgãos estaduais. O Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), sendo que os procedimentos para alteração de titularidade estão disponíveis nos sítios digitais do órgão.[5] Adicionalmente, o TJSC proferiu decisão bastante relevante para o ambiente de negócios envolvendo transações societárias que impliquem venda de ativos já devidamente licenciados ao reconhecer que a transferência de titularidade da licença ambiental era prova suficiente para que o auto de infração lavrado em nome do titular anterior, após a transferência, fosse nulo por responsabilizar a pessoa que não era mais a titular da licença.[6]

O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia – INEMA, editou a Portaria nº 11.292/2016 que disciplina de forma avançada o procedimento de transferência de licenças ambientais. Segundo seu art.15, “a licença ou autorização ambiental, em vigor ou em tramitação perante o órgão ambiental, poderá ser transferida para o novo titular do empreendimento ou atividade, respeitando-se o prazo de validade da licença ou autorização, e desde que não haja modificação da atividade licenciada ou autorizada.” Além de tratar expressamente das hipóteses em quem a licença ou autorização ambiental pode ser transferida, a Portaria detalha os documentos, a forma de apresentação do pleito de transferência, tratando até mesmo da transferência parcial das licenças ambientais. Trata-se de exemplo de ato administrativo normativo que traz segurança jurídica tanto para a autoridade ambiental, quanto para os operadores, desenvolvedores e investidores de atividades potencialmente poluidoras.

Adicionalmente, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Minas Gerais – SEMAD[7] – também conta com procedimentos de alteração da titularidade das licenças ambientais, reforçando a ideia de que o licenciamento ambiental está aderido à atividade desenvolvida e não à pessoa que a desenvolve.

Ademais, não foram apenas os órgãos estaduais que preveem a possibilidade de alteração da titularidade das licenças ambientais, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais – IBAMA – também produziu normativos sobre a transferência de licenças. Em 2020, o IBAMA publicou a Portaria nº 2.725, de 23 de novembro de 2020,[8] responsável por fixar as diretrizes e procedimentos para alteração de titularidade do processo de licenciamento ambiental, o que demonstra que as entidades federais, a nível infralegal, já aceitam a possibilidade de transferência das licenças ambientais.

Nos casos em que a autoridade ambiental não tem disciplina sobre transferência de licenças, poder público e setor privado atuam em ambiente de reduzida segurança jurídica,   entre realizar o esforço interpretativo da legislação junto aos órgãos ambientais ou percorrer o trajeto do novo licenciamento ambiental.

Uniformidade

Como demonstrado, a possibilidade de transferência de licenças ambientais não é uma inovação jurídica, vários estados e até órgãos federais preveem a transferência de titularidade das licenças como mecanismo jurídico legal. Por essa razão, o dispositivo existente no PL nº 2.159/2021[9], que veio a substituir o PL nº 3.729/2004, traz uma grande oportunidade para disciplinar e uniformizar o tema da alteração de titularidade do licenciamento ambiental.

Entre as normas gerais que podem surgir, estão prazos como o da emenda 30 (correspondente a emenda 215 – Plen) que fixa o prazo de 30 dias para que a autoridade licenciadora tome uma decisão sobre a transferência de titularidade, o que poderia resultar em maior segurança jurídica e previsibilidade para os entes privados que dependem do licenciamento ambiental para o exercício de suas atividades.

Isso porque, quando durante o período entre o protocolo do pedido da transferência da licença ambiental e a efetiva transferência, a sociedade que está transferindo a licença passa a correr riscos relacionados a passivos ambientais, uma vez que, na prática, será a nova sociedade que irá desenvolver a atividade licenciada. Tem-se, portanto, que a ausência de lei nacional que preveja e regule a transferência de licenças ambientais é prejudicial ao cenário regulatório brasileiro, impactando diretamente a celeridade dos processos e gerando situações discrepantes entre estados da federação, bem como insegurança jurídica ao ambiente de negócios.

Atualmente, sabe-se que o processo de licenciamento ambiental é custoso e moroso, o que, muitas vezes, surge como grande óbice à consecução de negócios jurídicos que visam a aquisição de um imóvel licenciado. Assim, a discussão do PL nº 2.159/2021 pode ser uma ótima oportunidade para disciplinar a transferência das licenças ambientais, como importante meio de facilitar as operações de compra e venda de ativos e de desburocratizar os procedimentos ambientais, mas sem prejuízo ao meio ambiente e os bens jurídicos tutelados.

 

 


 

[1] Disponível em: Portal da Câmara dos Deputados. Acesso em 28.05.2025.

[2] Parecer nº 82/2016/COJUD/PFEIBAMA-SEDE/PGF/AGU. Disponível em: Parecer-82-2016-COJUD-PFE-IBAMA-SEDE-PGF-AGU | PDF | Ambiente natural | Justiça. Acesso em 28.05.2025;

[3] TJ-PR 00280331920238160019 Ponta Grossa, Relator.: substituto Márcio Jose Tokars, Data de Julgamento: 12/11/2024, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 14/11/2024 Disponível em: link. Acesso em 28.05.2025;

[4] TJ-AM – Conflito de competência cível: 0769722-26.2022 .8.04.0001 Manaus, Relator.: Airton Luís Corrêa Gentil, Data de Julgamento: 22/05/2024, Câmaras Reunidas, Data de Publicação: 28/05/2024. Disponível em: link. Acesso em 28.05.2025;

[5] Disponível em: https://www.ima.sc.gov.br/index.php/downloads/licenciamento-ambiental/manuais/3532-requerimento-de-troca-de-titularidade. Acesso em 28.05.2025;

[6] TJ-SC – AC: 03000561820188240023 Capital 0300056-18.2018.8 .24.0023, Relator.: Jorge Luiz de Borba, Data de Julgamento: 28/04/2020, Primeira Câmara de Direito Público. Disponível em: link. Acesso em 28.05.2025;

[7] Disponível em: https://sistemas.meioambiente.mg.gov.br/licenciamento/uploads/sMkav6pcqOSx9iS3UmYRpfj1E_X7k63c.pdf. Acesso em: 28.05.2025;

[8] Disponível em: https://www.ibama.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&legislacao=138954#:~:text=O%20requerimento%20de%20transfer%C3%AAncia%20de%20titularidade%20do%20processo%20dever%C3%A1%20conter,mais%20explica%C3%A7%C3%B5es%2C%20ver%20PARECER%20n. Acesso em 28.05.2025.

[9] Disponível em: PL 2159/2021. Acesso em 28.05.2025.

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