Nova e polêmica Resolução do Conselho Federal de Medicina restringe a indicação terapêutica do canabidiol e limita a divulgação dos resultados de estudos e avanços medicinais ao ambiente científico 19 out 2022

Nova e polêmica Resolução do Conselho Federal de Medicina restringe a indicação terapêutica do canabidiol e limita a divulgação dos resultados de estudos e avanços medicinais ao ambiente científico

Na última sexta-feira (14), o Conselho Federal de Medicina (“CFM”) publicou no Diário Oficial da União (“DOU”) a Resolução CFM n° 2.324/2022 (“Resolução”), que “aprova o uso de canabidiol para tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa”, mediante consentimento livre e esclarecido dos pacientes ou de seus responsáveis legais (i.e., via Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – “TCLE”).

A normativa, que já está em vigor, é resultado das decisões pautadas na sessão plenária do CFM realizada em 11 de outubro e revoga a antiga Resolução CFM n° 2.113/2014 sobre a matéria.

Em síntese, a Resolução estabelece uma série de regras a serem seguidas por profissionais médicos ao prescreverem a substância como método terapêutico aos seus pacientes. Diz a Resolução, basicamente, que a Cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol, não poderá ser prescrita, tal como já previa a norma revogada.

Também são trazidas outras vedações ao profissional médico, relacionadas à (i) prescrição de canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista na Resolução, salvo se fundadas em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP e (ii) a ministração de palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, bem como a realização de divulgação publicitária.

No que diz respeito ao padrão de qualidade da substância, deve-se respeitar o grau de pureza e a forma de apresentação segundo determinações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“Anvisa”) – que, diga-se de passagem, foi o único ponto de convergência neste tema.

Desde a recente publicação, a Resolução foi pauta de diversos artigos e notícias veiculados nos principais canais de comunicação, além de objeto de multiplas manifestações em redes sociais por parte de profissionais de saúde e associações.

Isto porque, tal como lançada, resta aparente o retrocesso em comparação à norma revogada, em vista da expressa restrição no que se refere à indicação terapêutica, limitando-a tão somente ao tratamento de epilepsias específicas, de modo que, a partir de agora, os médicos só poderão prescrever o canabidiol para o “tratamento de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gaustaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa”.

Em consequência direta e imediata, todas as demais indicações terapêuticas até então permitidas, incluindo Parkinson, Autismo, Alzheimer, Esclerose Múltipla, Ansiedade, Anorexia, Dores Crônicas, dentre tantas outras com eficácia já comprovada cientificamente, não poderão mais ser prescritas, e os pacientes terão, então, os respectivos tratamentos sumariamente interrompidos.

A norma proíbe, ainda, que os médicos ministrem palestras e cursos sobre o uso de canabidiol ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico e/ou façam qualquer divulgação publicitária relacionada, impedindo, portanto, que a população tenha acesso às informações atualizadas relacionadas aos tratamentos terapêuticos que, porventura, possam vir a beneficiar os sintomas causados por outras enfermidades não contempladas pela nova Resolução.

Evidente que a norma, ao restringir a autonomia médica e de certa forma cercear a potencialidade deste setor, seja para com relação à prescrição da terapia canábica, impossibilitando que os pacientes em tratamento deem continuidade a este, seja no que tange ao compartilhamento de informações, reverberou negativamente. O seu conteúdo tende a ser questionado, mormente porquanto contraria disposição constitucional que estabelece o direito de todos à saúde visando a redução dos riscos de doenças e agravamentos delas decorrentes, bem como normas e regulamentações já aprovadas pela Anvisa no que tange à matéria.

Vale dizer, inclusive, é tão flagrante o contrasenso que o CFM pôs no papel que até mesmo a Anvisa já se manifestou formalmente sobre o tema, indicando que manterá na íntegra os termos das RDCs da agência que regulam a matéria.

O mesmo racional se aplica ao PL em trâmite no Congresso Nacional.

Ora, o mercado da Cannabis medicinal já é considerado um sucesso mundo afora. Apenas em 2020, a venda legal de Cannabis no mercado mundial atingiu R$ 122 bilhões, um aumento de 48% na comparação com 2019[1]. Uma pesquisa do Prohibition Partners prevê que o segmento atinja um ganho global de US$ 105 bilhões até 2026 – e somente a América Latina deve responder por US$ 824 milhões dos US$ 55,3 bilhões estimados para o mercado mundial de Cannabis no ano de 2024[2].

Em 2020, desde que a Anvisa autorizou o uso terapêutico nos tratamentos de diversas doenças, mais de 45 mil unidades de produtos à base de Cannabis foram importados pelo país e mais de 800 médicos brasileiros já prescreveram produtos derivados.

Resta-nos claro que, em movimento eminentemente retrógrado aos avanços relativos à democratização do acesso à substância pela população brasileira, a nova normativa também destoa de todo o cenário internacional que avança expressivamente em prol do reconhecimento e encorajamento da Cannabis como instrumento medicinal e terapêutico de altíssima eficácia.

E fato é que, conforme já abordamos em nossa publicação “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: a polêmica cartilha do Governo sobre o uso e a legalização da Cannabis”, de agosto deste ano, a aceitação do uso da Cannabis medicinal, tanto pelos médicos, como pela sociedade, está crescendo gradativamente – o que não pode, e não deve, ser desconsiderado pelo aparelho estatal.

O preconceito e a carga ideológica trazem uma verdadeira desordem para o mercado, ignorando as evidências técnicas e científicas que comprovam a melhora significativa na qualidade de vida das pessoas que convivem com severas sequelas de doenças crônicas e que fazem uso regular da Cannabis medicinal.

Não se pode admitir, então, que uma questão de acesso à saúde, ciência, terapias e economia se transforme em pauta ideológica, e acabe por sucumbir a restrições tão maléficas à sociedade e ao próprio país.

[1] Brasil Econômico. Mercado de maconha medicinal promete gerar R$ 9,5 bi por ano até 2025. Publicado em 09 de junho de 2021. Disponível online em < https://economia.ig.com.br/2021-06-09/maconha-medicinal-dinheiro.html >

[2] Prohibition Partners. The Global Cannabis Report: Second Edition. Disponível em < https://prohibitionpartners.com/reports/the-global-cannabis-report-second-edition/ >

 

Principais contatos:

Bruna B. Rocha, Sócia, Life Sciences, Healthcare, Cannabis

Juliana Marcondes de Souza, Associada, Life Sciences, Healthcare, Cannabis

Victoria Cristofaro Martins Leite, Associada, Life Sciences, Healthcare, Cannabis

* Com a colaboração de Luiza Meira Novaes, Trainee, Life Sciences, Healthcare, Cannabis

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