2 jul 2025

Quem será a autoridade reguladora de IA no Brasil?

Por Carolina Caiado, Paula Mena Barreto e Ana Carolina Rocha

 

Avança no Congresso Nacional o projeto de lei que tratará das normas gerais, em caráter nacional, para desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial. O PL 2338/2023 é resultado do trabalho da comissão de juristas que atuou na elaboração do texto substitutivo de três projetos de lei que tramitavam conjuntamente sobre o tema no Senado.

A tramitação do projeto ganhou força com a publicação do AI Act pelo Parlamento Europeu em abril de 2024, aliado à crescente utilização da IA nos diversos segmentos da indústria e da sociedade. Hoje, o texto encontra-se em fase de audiências públicas no Senado Federal. Na P&N #33, tratamos de questão ainda não elucidada: a natureza e o porte da entidade reguladora da IA.

Na redação original do PL 2338/2023, caberia ao poder executivo federal decidir se criaria órgão com subordinação hierárquica e integrante da administração direta ou se criaria entidade da administração indireta, dotada de maior autonomia em relação ao poder central, a exemplo das agências reguladoras e autarquias de natureza especial.

Na redação mais recente do PL, sinaliza-se que a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANDP), assumirá as atribuições de entidade reguladora da IA no Brasil. No texto em discussão no Senado Federal, o Poder Executivo Federal estabelecerá o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA), que será integrado por:

  • (i) ANPD, na qualidade de autoridade competente que irá coordená-lo;
  • (ii) autoridades setoriais;
  • (iii) o Conselho Permanente de Cooperação Regulatória de Inteligência Artificial (CRIA);
  • (iv) o Comitê de Especialistas e Cientistas de Inteligência Artificial (CECIA).

Atribuições

A autoridade competente terá um rol amplo de atribuições, que envolvem funções estatais de poder de polícia, atividade normativa e fomento ao desenvolvimento e inovação tecnológica, em ambiente extremamente desafiador, em razão de sua natureza disruptiva e de rápido desenvolvimento dos sistemas de IA.

A redação atual do PL contempla mecanismos de acreditação de organismos de avaliação de conformidade, nacionais ou internacionais, especializados em governança de sistemas de IA para avaliar o cumprimento das medidas de governança e processos internos a serem exigidos pela futura autoridade. Caberá à autoridade competente manter registros públicos e atualizados desses organismos que vierem a ser acreditados.

Competirá ainda à autoridade competente zelar pela proteção dos direitos fundamentais e daqueles que, potencialmente, possam ser impactados pela utilização de sistemas de inteligência artificial; incentivar ações de cooperação, em articulação com autoridades que promovam a proteção e o desenvolvimento no uso desses sistemas, em âmbito nacional ou transnacional; e estabelecer critérios regulatórios destinados à conformação desses sistemas aos parâmetros legais, especialmente no que tange à proteção de dados, à confidencialidade das informações e aos efeitos jurídicos que possam decorrer de sua aplicação.

Flexibilidade

Destacam-se também os sandboxes regulatórios, que têm por objetivo viabilizar o desenvolvimento, testagem e validação segura de soluções inovadoras em IA, por período determinado, antes de seu lançamento definitivo no mercado. Pretende-se, com isso, criar um ambiente regulatório seguro e mais bem supervisionado para os avanços tecnológicos.

Os sandboxes constituem-se de espaços experimentais nos quais a participação dependerá de autorização específica da autoridade competente ou das autoridades setoriais envolvidas, que poderão suspender ou flexibilizar a aplicação de determinadas normas, sem prejuízo da preservação dos direitos fundamentais.

A ANPD será uma boa escolha para esta importante missão institucional?

A resposta à pergunta, como já havíamos antecipado em nossa última análise sobre a matéria, dependerá da disponibilidade de recursos públicos e da estratégia a ser escolhida pelo Governo Federal. Hoje, ANPD apresenta-se como agência reguladora recente, voltada exclusivamente para a tutela da proteção de dados pessoais.

Com quase 5 anos de atuação, a ANPD tem exercido papel importante na implementação, consolidação e fiscalização do cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados por meio de postura orientativa, preventiva e conscientizadora, com a edição de diversas resoluções, guias e procedimentos sobre proteção de dados pessoais e privacidade, mas também por meio de regulação responsiva, recorrendo a instrumentos sancionatórios, como multas e advertências, quando necessário.

Desde a criação da ANPD, os desafios regulatórios se intensificaram, e a Autoridade tem assumido um papel cada vez mais relevante em discussões fundamentais para o interesse público, como a regulação de plataformas digitais e os debates sobre a regulamentação da inteligência artificial no Brasil. Nesse contexto, destacam-se iniciativas recentes como a Tomada de Subsídios sobre Inteligência Artificial e a Revisão de Decisões Automatizadas, que a auxiliarão na identificação de questões cruciais associadas ao uso de IA em termos de privacidade e proteção de dados, o que demonstra a atenção e o comprometimento da ANPD com uma abordagem técnica e participativa na construção de marcos regulatórios para novas tecnologias.

O art. 74, I, do PL prevê que o Governo Federal fornecerá, no prazo de dois anos, os recursos necessários à ANPD para realizar o escopo previsto na lei, inclusive mediante a necessária reestruturação administrativa para equipá-la em níveis adequados à realização de todo o escopo institucional que lhe será atribuído. O dispositivo expressamente trata da reestruturação administrativa da ANPD, que hoje não dispõe de robustez institucional e funcional para exercer as funções de autoridade competente de IA no Brasil.

Conflito

No entanto, verifica-se no PL ponto de preocupação acerca dos tempos e movimentos do início da vigência dos seus dispositivos, quando da promulgação da futura lei. Se de um lado a reestruturação administrativa da ANPD ocorrerá em, no mínimo dois anos após publicação da lei, sanções administrativas previstas no art. 50 do PL e que serão aplicadas pela ANPD terão eficácia imediata.

Ainda que o PL estabeleça período de vacatio legis considerado adequado para a adaptação dos agentes reguladores aos efeitos da nova legislação, não há qualquer garantia de que, até o início da vigência das referidas sanções, a autoridade já esteja devidamente estruturada e dotada dos recursos institucionais, humanos e orçamentários necessários ao desempenho de suas atribuições.

Tal cenário poderá trazer insegurança jurídica e institucional à regulação de IA, na medida que as sanções estarão em vigor sem que a estrutura do poder de polícia estatal esteja plenamente operacional. Além disso, não há previsão de outras fontes de recursos que poderão subsidiar a ANPD.

Na atual redação do PL, seus recursos serão oriundos integralmente do orçamento do Governo Federal, já tão demandado por outras frentes da sociedade. Tal limitação tende a resultar em uma estrutura subdimensionada, comprometendo a autonomia e a efetividade da atuação regulatória.

Nesse sentido, espera-se as discussões no Congresso Federal aprimorem esses aspectos do PL, conciliando a vigência das sanções administrativas com a reestruturação administrativa da ANPD e prevendo outras fontes de recursos para subsidiar a operação da instituição, a exemplo de fundo que venha a ser constituídos dos recursos coletados pela ANPD na aplicação de multas a seus jurisdicionados.

Seguiremos acompanhando a tramitação do PL nº 2338/2023 e mantendo você atualizado sobre o tema nas próximas edições da P&N.

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