Reflexões sobre o leilão da Cedae: a matriz de riscos da futura concessão
Por: Marjorie Iacoponi e Renata Costa Rainho
Fonte: JOTA
Os desafios enquanto matriz de riscos não se limitam ao esforço de coordenação entre os prestadores de serviço
Se a sabedoria popular diz que a morte é a única certeza da vida, frase que nos remete à fúnebre realidade dos tempos de pandemia da Covid-19, em direito público, a única certeza é a de que um contrato de concessão terá suas bases iniciais alteradas nas décadas que seguirão a sua execução. Daí a necessidade de pré-definir as responsabilidades de cada uma das partes envolvidas na prestação de um serviço público, dar transparência sobre os critérios de alocação dos riscos para cada uma das partes e estabelecer as bases para sua interpretação e aplicação ao longo da execução contratual.
Não é diferente, senão extremamente desafiador, analisar a matriz de responsabilidade no leilão a ser promovido pelo Governo do estado do Rio de Janeiro para concessão dos serviços de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário, prestados atualmente de forma regionalizada pela Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae).
Os desafios enquanto matriz de riscos não se limitam ao esforço de coordenação entre os prestadores de serviço. Como abordado anteriormente[1], a concessionária de cada um dos quatro blocos operará com exclusividade apenas parcela dos serviços de saneamento, quais sejam: abastecimento de água potável e esgotamento sanitário. A produção de água – reservação, captação, adução e tratamento de água bruta – permanecerá a cargo da Cedae, nos termos do Contrato de Interdependência, Anexo IV do Edital, a ser firmado entre a estatal e as futuras concessionárias.
Assim, no caso dos futuros contratos de concessão do leilão da Cedae, será fundamental estabelecer de quem será a responsabilidade pela qualidade da água, diante de eventuais traços de geosmina na água fornecida pela Cedae.
Ainda que não seja declarada imprópria para consumo, fato é que o consumo pode ser inibido diante do gosto e cheiro fortes deixados pelo composto orgânico e a futura concessionária será alvo de reclamações dos cariocas.
Os temas, a desafiar o tempo e os intérpretes dos futuros contratos de concessão, não se esgotam no desafio de coordenação, mesmo que dele desdobrem outros, como por exemplo o volume de água. Este artigo analisa esse e outros riscos de operação e político-regulatórios identificados para colaborar com o debate público, reduzir as incertezas e aumentar o ganho econômico para o estado do Rio de Janeiro. Pois, restabelecida a segurança jurídica e esclarecidos os pontos cegos, as propostas comerciais tendem a ser mais bem precificadas e, com isso, mais altos os lances no leilão.
Assim, identifica-se o risco operacional relacionado ao volume mínimo de água que a Cedae será obrigada a fornecer a cada bloco. Se a medição e o controle do volume de água fornecido ficarão a cargo dos medidores de vazão de água a serem instalados por cada concessionária nas fronteiras de sua área de concessão com as demais concessionárias, resta entender o tratamento que o contrato de concessão oferece, se o volume fornecido ficar aquém da demanda das concessionárias.
O Contrato de Interdependência determina o volume mínimo para os três primeiros anos de operação, com possibilidade de ampliação da demanda a pedido da concessionária. As licitantes devem considerar nas suas análises e estudos prévios ao leilão a aquisição de volumes mínimos, independentemente da demanda efetiva nesse período.
Contudo, após os primeiros três anos, caso a concessionária planeje volume maior, caberá à Cedae o ônus de realizar obra pública para ampliação da oferta, sem clareza quanto ao prazo ou resultado. A apresentação dos projetos de engenharia às concessionárias dependerá, contudo, de futura decisão da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa), com rito e prazos também incertos.
O compartilhamento de infraestrutura para a captação de água também gera outras dúvidas sobre o local exato da instalação dos macro medidores pelas concessionárias, o qual pode ser objeto de pedido de alteração pela concessionária. O Caderno de Encargos (Anexo IV) apresenta mapa com identificação da localização dos macro medidores, mas ainda remanescem dúvidas se seria no trecho da saída da Cedae ou na chegada aos pontos de distribuição de cada concessionária. Na mesma linha, deve-se esclarecer como serão contabilizadas e administradas as perdas ao longo do transporte, decorrentes de vazamentos e falta de manutenção das tubulações.
Riscos alheios à água, porém sensivelmente pertinentes ao leilão da Cedae, dizem respeito a fatores político-regulatórios. Dois deles chamam maior atenção do ponto de vista jurídico. O primeiro é a possibilidade expressa de municípios ingressarem na prestação regionalizada no curso da concessão. Com fundamento no artigo 8-A da Lei 11.445/2007, introduzido pela Lei 14.026/2020, o Edital permite que municípios que não integram originalmente os blocos manifestem o interesse na adesão “sem que haja impacto negativo sobre o contrato que resulte em reequilíbrio mediante redução das outorgas devidas pelas concessionárias ou impactos de majoração do valor das tarifas básicas” (item 36.6.) e desde que seja “para garantir a continuidade da prestação do serviço”, o que precisará ser demonstrado caso a caso (art. 18, VII, da Lei 8.987/1995).
Operacionalizar a inclusão sem qualquer impacto não se mostra real, pois a equação econômico-financeira terá sofrido alterações com a extensão do objeto da concessão, admitindo, contudo, a repactuação por outras formas legal e contratualmente admitidas. São exemplos mais prováveis, o aumento do tempo de concessão e a alteração das metas de atendimento e, menos prováveis, a assunção de investimentos por parte do estado ou até mesmo a indenização nos termos da cláusula 34 do Contrato.
O segundo risco refere-se às obrigações de responsabilidade social das concessionárias disciplinadas na cláusula 48 do contrato de concessão. Embora fundamentais para transformar a realidade social e econômica das chamadas áreas irregulares não urbanizadas[2], o contrato deixa de criar mecanismos de monitoramento e mensuração e impõe obrigações específicas refletindo a sua própria ideia de responsabilidade social.
Assim, algumas medidas são importantes como relembrar a exigência legal de reserva de 1% das vagas do quadro de funcionários para deficientes físicos ou mentais e impor o mesmo percentual para ex-detentos das penitenciárias e presídios do estado do Rio de Janeiro, como forma de contribuir para a reabilitação e a reinserção dessas pessoas na sociedade. Embora necessárias para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, não está esclarecida sua relação com o objeto licitado, tampouco a forma como será fiscalizada e monitorada tal obrigação contratual.
Indo além, o contrato parece querer fazer “caridade com o chapéu alheio” ao impedir a concessionária de realizar ações de combate à fraude e/ou furto de água, ou cortar o fornecimento de água em locais em que não há rede pública de saneamento nas áreas irregulares não urbanizadas. Mais do que criticar, sugere-se conferir maior liberdade à concessionária para, ciente das boas práticas de responsabilidade social, e consciente da importância do seu relacionamento com a comunidade, criar a estratégia mais adequada e convincente para o uso consciente da água para todos, sem preferências partidárias, religiosas, raciais e sociais.
A concessão da prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico em quatro blocos, por concessionárias potencialmente diferentes, e com parcela relevante dos serviços prestados por empresa pública, certamente não é tarefa fácil. Mais ainda no estado do Rio de Janeiro, que já sofre com as consequências dos litígios recentes envolvendo concessões já maduras. Em um contexto com tamanho desafio torna-se imperioso cobrir todas as potenciais lacunas e buscar total clareza na matriz de riscos da nova concessão.
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