Reversão de bens públicos ao final de contratos de saneamento deve ser condicionada ao pagamento de prévia indenização?
por Carolina Caiado e Leonardo Ribas
A reversão de bens públicos ao término de contratos de concessão representa um desafio complexo e sensível, mas que não é maior do que a carência da população em algumas áreas, como, por exemplo, no que diz respeito ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário.
Frequentemente, discussões acerca da reversão dos bens públicos vinculados à prestação dos serviços prejudica os usuários. No mais das vezes, tais debates decorrem da falta de clareza dos instrumentos contratuais afetos à concessão, ou da recalcitrância da concessionária que será substituída, que procura condicionar a devolução dos bens à prévia compensação financeira. Ocorre que, embora a pretensão indenizatória possa ser em tese legítima, ela não justifica a criação de entraves à devolução dos bens reversíveis, e certamente não é pretexto para a ampliação do contrato de concessão em curso.
Contratos de saneamento
A oposição à devolução dos bens reversíveis será tanto mais lesiva quanto for a essencialidade dos serviços e a complexidade dos bens a serem retornados. Nesse sentido, a situação dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário é emblemática.
Em primeiro lugar, trata-se de serviços essenciais à saúde da população. Quanto mais remota a localidade, menor é o índice de coleta, tratamento de esgoto, bem como abastecimento de água potável. Segundo os dados do Instituto Trata Brasil, em 2021 houve no país mais de 130 mil internações por doenças de veiculação hídrica. O site também traz estatísticas sobre a carência do tratamento de esgoto no Brasil, que não chega a 60% da população (Instituto Trata Brasil, acesso em 09/04/2024).
Em segundo lugar, há a necessidade de que a nova concessionária assuma e opere com brevidade bens reversíveis complexos, que envolvem infraestruturas hidráulicas, tais como tubulações, reservatórios, estações de tratamento de água, estações de bombeamento, adutoras, e infraestruturas de esgotamento sanitário, compreendendo redes coletoras de esgoto, estações de tratamento, emissários, elevatórias, e estruturas de tratamento e disposição final dos esgotos.
Além disso, também são considerados bens reversíveis ao poder público os equipamentos, máquinas, veículos e ferramentas de manutenção, softwares e sistemas de gestão responsáveis pelo controle de toda a operação, além de toda a documentação técnica, que inclui manuais, projetos, planos operacionais e outros documentos fundamentais para a gestão do sistema.
Com efeito, os parágrafos §2º e 3º, do artigo 35, Lei Federal nº 8.9487/95 (Lei de Concessões), determinam que, uma vez extinta a concessão, “haverá a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários”, bem como que, a “…assunção do serviço autoriza a ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os bens reversíveis”.
Regras de indenização
Especificamente nos casos de extinção da concessão por advento do termo final de vigência do contrato (art. 35, I) e por encampação (art. 35, II), a Lei de Concessões ainda determina que o poder concedente se antecipe ao final da concessão, e proceda aos levantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária (art. 35, § 4º).
Na mesma linha, a Lei nº 11.445/2007 (Marco Legal do Saneamento) prevê que a transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, nos termos da Lei de Concessões, facultado ao titular atribuir ao prestador que assumirá o serviço a responsabilidade por seu pagamento. (art. 42, § 5º). Note tratar-se de uma faculdade, não de uma obrigação.
Destaca-se que o art. 42, § 5º do Marco Legal do Saneamento, que trata das regras de indenização nas hipóteses de transferência de serviços de um prestador para outro, teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento conjunto das ADIs nº 6.492/DF, nº 6.536/DF, nº 6.583/DF e nº 6.882/DF.
Tais dispositivos da Lei de Concessões e do Marco Legal do Saneamento resguardam a pretensão indenizatória por investimentos ainda não amortizados e por bens ainda não depreciados ao final da concessão, o que é razoável, afinal de contas, sem direito à indenização, nenhum concessionário investiria nos ativos necessários à boa prestação dos serviços públicos nos anos finais dos contratos de concessão.
Por outro lado, a insegurança jurídica a propósito da imediata devolução dos bens reversíveis para o poder público também não favorece a ampliação do número de interessados em assumir novas concessões, em especial, no caso de serviços complexos como aqueles afetos ao saneamento básico. E, decerto, a legislação não determina o pagamento prévio de indenizações, e os bens reversíveis não podem constituir ferramenta de barganha no sensível momento da transição.
Indenização prévia
Sobre o tema, há precedentes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (por exemplo, REsp nº 1.059.137-SC, Min. Rel. FRANCISCO FALCÃO), no sentido de que a transição dos serviços públicos, ativos, bens e informações, não se condiciona à prévia indenização ao concessionário, sob pena de prejudicar a continuidade da prestação dos serviços públicos.
Por sua vez, no julgamento das ADIs que reconheceram a constitucionalidade do art. 42, § 5º, do Marco Legal do Saneamento, o Supremo Tribunal Federal não se debruçou sobre a necessidade de prévia indenização ao concessionário como condição para a transferência dos serviços públicos.
Todavia, ao apreciar demanda envolvendo reversão de públicos afeto a concessão no Município de Salto, o Ministro André Ramos Tavares ponderou, em decisão monocrática, que “não é possível depreender desse conjunto de normas – e tampouco do julgado apontado como paradigma – que a ocupação deva ser necessariamente precedida de indenização. Embora a indenização seja devida, cumpre lembrar que, por se tratar de serviço essencial, revela-se imperativa a imediata assunção do serviço pela Administração, sem solução de continuidade no seu fornecimento aos usuários”. (STF, Reclamação 64.128 São Paulo, Min. Rel. ANDRÉ MENDONÇA, 22 de dezembro de 2023).
Tal entendimento deixa claro que a indenização prévia dos bens reversíveis não deve obstaculizar, em qualquer medida ou sentido, a transferência dos serviços públicos de saneamento básico. As indenizações, quando devidas, devem ser discutidas em vias próprias, assim, processos administrativos e, no limite, na via arbitral ou no Poder Judiciário, conforme previsão da cláusula de solução de conflitos dos respectivos contratos de concessão.
Em nossa visão, é fundamental que esse entendimento seja desde logo aplicado pelos tribunais estaduais, evitando que discussões indenizatórias inviabilizem a assunção dos serviços de saneamento pelos novos concessionários. Sem isso, no caso dos serviços de abastecimento de água, e de esgotamento sanitário, seguramente haverá mais atraso na universalização dos serviços preconizada pelo Marco Legal do Saneamento.
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* Ementas das decisões do STJ analisadas para a elaboração deste artigo.
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE CONCESSÃO. EXTINÇÃO. PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. INDENIZAÇÃO PRÉVIA. INCABIMENTO. 1. Extinto o contrato de concessão por decurso do prazo de vigência, cabe ao Poder Público a retomada imediata da prestação do serviço, até a realização de nova licitação, a fim de assegurar a plena observância do princípio da continuidade do serviço público, NÃO ESTANDO CONDICIONADO O TERMO FINAL DO CONTRATO AO PAGAMENTO PRÉVIO DE EVENTUAL INDENIZAÇÃO, que deve ser pleiteada nas vias ordinárias. 2. Agravo regimental improvido.” (STJ. AgRg no REsp 1.139.802/SC, Min. Rel. HAMILTON CARVALHIDO, 1ª Turma, J. em 12.04.2011)
“Declarada a nulidade da permissão outorgada sem licitação pública, NÃO SE PODE CONDICIONAR O TERMO FINAL DO CONTRATO AO PAGAMENTO PRÉVIO DE EVENTUAL INDENIZAÇÃO, cabendo ao Poder Público a retomada imediata da prestação do serviço, até a realização de nova licitação.” (STJ, AgRg no AREsp 481.094/RJ, Min. Rel. MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª Turma, J. em 15.05.2014)
“PEDIDO DE SUSPENSÃO. SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E TRATAMENTO DE ESGOTOS. RETOMADA DO SERVIÇO PÚBLICO PELO PODER PÚBLICO. A retomada do serviço público de fornecimento de água e de tratamento de esgotos por parte de um município não causa qualquer lesão ao interesse público. A indenização devida à concessionária é matéria a ser decidida, a seu tempo, na instância ordinária. Agravo regimental não provido.” (STJ, AgRg na SLS n.º 1.406/RS, Min. Rel. ARI PARGENDLER, Corte Especial, J. em 13.08.2011)
“O termo final do contrato de concessão de serviço público NÃO ESTÁ CONDICIONADO AO PAGAMENTO PRÉVIO DE EVENTUAL INDENIZAÇÃO REFERENTE A BENS REVERSÍVEIS NÃO AMORTIZADOS OU DEPRECIADOS. Com o advento do termo contratual tem-se de rigor a reversão da concessão e a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, incluindo a ocupação e a utilização das instalações e dos bens reversíveis. A lei n. 8.987/95 não faz qualquer ressalva acerca da necessidade de indenização prévia de tais bens” (STJ, EDcl no REsp nº 1.059.137-SC, Min. Rel. FRANCISCO FALCÃO, 1ª Turma, J. em 02.12.2008).
* Ementa do acórdão paradigma do STF analisado para a elaboração deste artigo.
AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.492, 6.536, 6.583 E 6.882. DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E REGULATÓRIO. LEI 14.026/2020. ATUALIZAÇÃO DO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO. RENOVAÇÃO EM QUATRO LEIS FEDERAIS – NA LEI 9.984/2000, QUE INSTITUIU A AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA); NA LEI 10.768/2003, QUE DISPÕE SOBRE O QUADRO FUNCIONAL DA ANA; NA LEI 11.107/2005, A LEI DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS; E, PRINCIPALMENTE, NA LEI 11.445/2007, QUE ESTABELECE AS DIRETRIZES NACIONAIS PARA O SANEAMENTO BÁSICO. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE POSITIVO. MÉRITO. QUATRO PREMISSAS TEÓRICAS. (A) DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SANEAMENTO. (B) FUNCIONALIDADE E ATRIBUTOS ECONÔMICOS DO SANEAMENTO. (C) REALIDADE BRASILEIRA À LUZ DA REDAÇÃO ORIGINAL DA LEI 11.445/2007. DESATENDIMENTO ÀS ESSENCIALIDADES SANITÁRIAS. (D) OBJETIVOS SETORIAIS DA LEI 14.026/2020. TEMÁTICAS APRECIADAS. PRIMEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (1) OS INSTRUMENTOS DE PRESTAÇÃO REGIONALIZADA VERSUS A AUTONOMIA POLÍTICA E FINANCEIRA DOS MUNICÍPIOS. CONSTITUCIONALIDADE DOS INSTITUTOS LEGAIS DE COOPERAÇÃO. SEGUNDO PILAR DA LEI 14.026/2020. (2) A MODELAGEM CONTRATUAL QUE DETERMINOU A CONCESSÃO OBRIGATÓRIA E, AO MESMO TEMPO, A VEDAÇÃO AO CONTRATO DE PROGRAMA. CONTRAPONTOS: “ESVAZIAMENTO” DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DOS MUNICÍPIOS E DESRESPEITO A ATOS JURÍDICOS PERFEITOS. IMPROCEDÊNCIA. DEFASAGEM E ACOMODAÇÃO GERADAS PELO CONTRATO DE PROGRAMA. TERCEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (3) O ROBUSTECIMENTO DA INSTÂNCIA FEDERAL PARA A COORDENAÇÃO DO SISTEMA DE SANEAMENTO. ALEGAÇÕES: VÍCIO FORMAL ORIGINÁRIO NA ATRIBUIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS FISCALIZATÓRIAS E SANCIONADORAS À AGÊNCIA; E ABUSO DE PODER NO PROCEDIMENTO CONDICIONANTE À ELEGIBILIDADE PARA AS TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS. IMPROCEDÊNCIA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A TUTELA DA SEGURANÇA JURÍDICA, EM FACE DOS ARTS. 13 E 14 DA LEI 14.026/2020. AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDAS E, NO MÉRITO, JULGADAS IMPROCEDENTES.
(ADI 6492, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 02-12-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 24-05-2022 PUBLIC 25-05-2022)
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