Sancionada lei que garante o fornecimento gratuito de cannabis medicinal em São Paulo
Na última terça-feira (31), foi sancionada a lei (Lei n° 17.618/23) que autoriza a distribuição gratuita de medicamentos à base de canabidiol na rede pública de saúde do estado de São Paulo – isto é, pelas unidades de saúde pública estadual e privada conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). O texto do projeto havia sido aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em 21 de dezembro de 2022, e contou com o apoio de mais de 40 mil pessoas por meio de abaixo-assinado online, bem como da Ordem dos Advogados do Brasil do estado (OAB-SP) por meio de carta.
Com a sanção, será criado um grupo de trabalho até o dia 2 de março, voltado à regulamentação da nova lei, o qual será formado por “técnicos e representantes de associações sem fins lucrativos de apoio e pesquisa à (sobre) cannabis e de associações representativas de pacientes” (Art. 5º, Parágrafo Único, da lei em questão). A comissão definirá regras para o acesso de pacientes do SUS aos medicamentos à base do canabidiol e será responsável por implementar, atualizar e reavaliar a Política Estadual de Medicamentos Formulados à Base de Cannabis.
A nova lei, que entrará em vigor em 90 dias, visa garantir o acesso popular à cannabis medicinal, facilitando (e desburocratizando) sua obtenção, em benefício, sobretudo, de indivíduos portadores de doenças como Parkinson, Autismo, Alzheimer, Esclerose Múltipla, Ansiedade, Anorexia, Dores Crônicas, dentre outras patologias e síndromes raras cujo tratamento à base do canabidiol tem eficácia cientificamente comprovada – e, por essa razão, vem se tornando uma tendência mundo afora.
De fato, a nova política representa um avanço importante para o estado de São Paulo, uma vez que minimiza os impactos financeiros da crescente judicialização da saúde no país – isto porque, atualmente, os medicamentos à base de cannabis só são fornecidos gratuitamente pelo Poder Público mediante decisão judicial.
Segundo o próprio Governo do Estado de São Paulo, “as ações judiciais impactam diretamente o orçamento público da saúde pública, privilegiando direitos individuais em detrimento das políticas públicas estabelecidas no SUS”. Sabe-se, aliás, que de 2015 a 2021, tais ações judiciais para oferta de remédios derivados de cannabis no SUS alcançaram o total de R$ 50 milhões em 13 estados, sendo R$ 42 milhões apenas no estado de São Paulo. De acordo com o deputado Caio França, autor do projeto de lei aprovado, estima-se que o governo paulista tenha desembolsado cerca de R$ 20 milhões com esse tipo de judicialização em 2022.
Essa cifra por si só demonstra o alto custo de um tratamento à base de cannabis.
Vale frisar que foi no ano de 2015 que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a importação, diretamente pelos pacientes (o chamado “uso compassivo”), de produtos medicinais fabricados a partir do canabidiol. Entre 2015 e 2021, o Brasil recebeu mais de 70 mil pedidos de importação para produtos à base de cannabis, sendo que, somente em 2021, a Anvisa concedeu mais de 32 mil liberações para tal (um número 15 vezes maior em comparação com o ano de 2017). Neste regime compassivo, o produto à base de cannabis não exige registro no país, ainda que evidentemente sujeito a outras diversas condições para internalização no Brasil.
Ainda, foi a partir de 2019 que a Anvisa passou a regular a venda de produtos derivados de cannabis em farmácias e drogarias (Resolução Anvisa RDC n° 327/2019). Note que os produtos enquadrados nesta resolução não são medicamentos, mas sim “produtos à base de cannabis”. Neste modelo, os insumos são importados de países em que o cultivo da erva é permitido para então industrialização no país, ou, ainda, a importação é do produto acabado em si, para então distribuição local. A compra, por sua vez, é feita pelo paciente a partir de prescrição médica, diretamente no estabelecimento comercial.
Até o momento, são 23 produtos com autorização para venda por um prazo de 5 anos.
Também vale reforçar, inclusive, que com o exaurimento deste prazo de 5 anos concedido às autorizações sanitárias, hoje em vigor para comercialização de produtos à base de cannabis em farmácias e drogarias, as empresas deverão solicitar a regularização de seus produtos perante à Anvisa para que possam continuar comercializando-os no país – o que inevitavelmente as obrigará a investir em cada vez mais estudos (exigidos pela agência para o processo de registro sob a posição regulatória de “medicamento”), fomentando debates e interações para a realização de mais pesquisas clínicas a partir do canabidiol, bem como uma maior exposição do tema à sociedade em geral. É certo que um maior volume de pesquisas sobre o desenvolvimento de novos medicamentos à base de canabidiol estimulará a concorrência nacional, a qualidade dos produtos, e, consequentemente, a competitividade dos preços.
Combinando estas permissivas e associando-as à atual jornada do paciente, o problema reside no fato de que, apesar da possibilidade de importação, o acesso a produtos e medicamentos à base do canabidiol continua restrito para a grande maioria da população, considerando a alta burocracia, como já visto, e principalmente o alto custo aquisitivo – seu valor médio, por mês, ainda varia de R$ 1.500 a R$ 2.000, a depender da dosagem do paciente.
Então, além da desburocratização, portanto, a nova política estadual permitirá a democratização do acesso a tais tratamentos inovadores.
Outra vantagem para a população é o cuidado que tem sido despedido para educação sobre protocolos terapêuticos eficazes e aprovados pelas autoridades nacionais de saúde, como registro do produto na Anvisa e outras agências reguladoras relevantes mundo afora, delimitação de dose de segurança, evidência de eficácia, indicação terapêutica ou controle clínico do uso.
É claro que a nova Lei n.° 17.618/2023 será alvo de inúmeras críticas, em sua maioria válidas, no tocante (i) à insuficiência do diploma, que desconsidera fatos sociais relevantes, como, por exemplo, o cultivo doméstico, o associativismo, o uso de produtos de cannabis per se (e não somente de medicamentos derivados de cannabis) e a pesquisa agrícola com a substância canábica, bem como (ii) a delimitação do texto no que tange à descrição do objeto – considerando que, hoje, existem poquíssimos produtos no mundo tratados estritamente como medicamentos, e não produtos.
A minha reação imediata ao ler o texto da nova lei é “quão efetivo será o fornecimento positivado? No Brasil, por exemplo, existe apenas um medicamento à base de cannabis. É importante que o legislador pondere com cautela as definições estabelecidas pela Anvisa, para então considerá-las em legislações ordinárias localmente, a fim de evitarmos discussões vazias pautadas, por exemplo, em mero legalismo.” – disse Bruna.
Além disso, pode-se citar outra crítica no tocante à delimitação de pacientes beneficiados com a medida, já que a nova lei indica que somente “pacientes cujo tratamento com a cannabis medicinal possua eficácia ou produção científica que incentive o tratamento”, sendo que, na realidade, o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) já alertou que, embora não faltem evidências clínicas quanto à eficácia da cannabis no combate a inúmeros quadros de saúde, há uma carência de evidências científicas conclusivas devido ao cenário proibitivo do país.
De toda forma, não se pode negar tamanha conquista política e social que o texto configura, sobretudo no que tange à promoção do debate e da educação quanto ao tema.
Ao enfrentar a resistência moralista e conservadora do estado e do país, a medida enfim prioriza a saúde pública da população, bem como um maior custo-efetividade e custo-benefício no âmbito da saúde. Em nível federal, para os próximos anos, espera-se uma segregação cada vez maior entre as opiniões moral e religiosa, e o avanço de discussões pragmáticas em relação à cannabis. Só assim as próximas etapas de regulamentação em pauta serão finalmente desemperradas, e o debate sério, justo e racional, tanto no Congresso Nacional quanto no Executivo, será finalmente fomentado.
Principais contatos do time de Life Sciences, Healthcare e Cannabis:
Bruna B. Rocha, Sócia
Juliana Marcondes de Souza, Associada
Victoria Cristofaro Martins Leite, Associada
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