Saúde Pública: como a nova Lei de Licitações aprimora e amplia instrumentos jurídicos para contratações do SUS 28 jun 2023

Saúde Pública: como a nova Lei de Licitações aprimora e amplia instrumentos jurídicos para contratações do SUS

por Bruna Rocha e Carolina Caiado

Saúde é direito de todos e dever do Estado, conforme estabelecido pela Constituição Federal brasileira de 1988 (art. 196). Para garantir o acesso a esse direito, em 1990, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que é uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços públicos de saúde, com diversas atribuições na Constituição: (i) controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; (ii) executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; (iii) ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; (iv) incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação; (v) fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; (vi) participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; (vii) além de participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico e (vii) colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho (art. 200, CF/88).

Diante de tantas atribuições conferidas ao SUS, a Constituição determinou ainda que parcela relevante dos recursos públicos dos orçamentos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios seja direcionada à saúde.

Em 2023, o orçamento federal da Saúde será de R$ 182,6 bilhões, conforme consta da Nota Técnica nº 29 emitida pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). Apesar de as conclusões da Nota Técnica apontarem crescente estagnação do orçamento para saúde nos últimos 10 anos, é fato que o volume de recursos destinados às contratações do setor de saúde é vultoso, o que faz do SUS um golden client para fornecedores e prestadores de serviços desta indústria.

O Estado gera constantes demandas de medicamentos, insumos, serviços e tecnologias para prover serviços de saúde à população, que são substancialmente atendidas pelo setor privado. Como acontece em diversos setores regulados sob forte regulação e consumo estatal, as relações público-privadas são essenciais para que a população receba os serviços aos quais tem direitos.

Tanto as relações entre poder público e iniciativa privada, quanto a gestão e uso de recursos públicos por parte do Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais, pautam-se primordialmente pelas normas de licitações e contratos administrativos que disciplinam as contratações públicas.

Novas regras
Quando entrar em vigor em 1º de janeiro de 2024, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) terá papel relevante nas compras de medicamentos, insumos, equipamentos, bem como contratações de serviços e novas tecnologias. A Lei aprimorou e ampliou os instrumentos jurídicos para as contratações do SUS, o que certamente trará mais segurança jurídica tanto para os agentes públicos que as realizam quanto para as empresas fornecedoras e contratadas do SUS.

Neste artigo, trataremos das mudanças mais relevantes: (i) hipóteses de dispensa de licitação, (ii) planejamento estratégico, (iii) instrumentos de consensualidade administrativa – PMI e Diálogo Competitivo, e (iv) contratações de longo prazo.

1) Hipóteses de Dispensa de Licitação

A nova lei traz dispositivos específicos para dispensar as entidades do SUS de realizar licitação nos seguintes casos: (i) aquisição de medicamentos destinados exclusivamente ao tratamento de doenças raras definidas pelo Ministério da Saúde; (ii) contratações em que houver transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o SUS, inclusive durante as etapas de absorção tecnológica; e (iii) aquisições, por pessoa jurídica de direito público interno, de insumos estratégicos para a saúde produzidos por fundações em projetos de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e de estímulo à inovação, inclusive na gestão administrativa e financeira necessária à execução desses projetos, ou em parcerias que envolvam transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o SUS (art. 75, inciso IV, alínea “m”, e incisos XII, XVI, todos da Lei 14.133/2021).

A dispensa de licitação é uma forma de contratação direta do poder público. Nestes casos, embora a licitação seja viável, visando a garantir eficiência e celeridade nas contratações, a própria lei dispensa a realização do processo licitatório. A pandemia do COVID 2019 demonstrou que as demandas dos serviços de saúde podem mudar e crescer abruptamente. A inclusão dessas hipóteses de dispensa de licitação para contratações do SUS, aliadas ao alargamento dos prazos para contratações emergenciais, ou decorrentes de calamidade pública, de 180 dias para 1 ano, são avanços legislativos que trazem mais segurança jurídica para agentes públicos e setor privado envolvidos nessas contratações (art. 75, inciso VIII).

Contudo, não se trata de conferir ao agente público “cheque em branco” para contratar sem critérios. Ao contrário, as contratações diretas por dispensa de licitação devem ser justificadas e formalizadas por processo administrativo, no qual constem a formalização da demanda, estimativa da despesa, parecer jurídico e pareceres técnicos das entidades públicas contratantes, justificativa do preço, razões para escolha do fornecedor ou prestador de serviços que comprovem deter habilitação e qualificação mínima necessárias para a contratação (art. 72).

A nova Lei cuidou de expressamente responsabilizar agente público e contratado no caso de contratações diretas indevidas, realizadas com dolo, fraude ou erro grosseiro, com o manifesto objetivo de evitar abusos e mau uso do mecanismo de contratação direta. Nestes casos, os envolvidos responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis (art. 73).

2) Planejamento estratégico

A nova lei traz dispositivo específico para determinar aos órgãos de planejamento dos entes federativos a elaboração do plano anual de contratações, a partir das demandas encaminhadas pelas diversas áreas de Governo (art. 12, inciso VII). O plano subsidiará a elaboração das leis orçamentárias. Como em qualquer organização que movimenta vultosos recursos em contratações, a Administração Pública passará a ser obrigada a elaborar seu planejamento estratégico para que, então, possa trabalhar nas leis orçamentárias.

3) Permissão para Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI)

Muito comum nas licitações para outorga de concessões de serviços públicos e parcerias público-privadas (PPPs), o PMI passa agora a ser expressamente permitido nas compras e contratações de serviços do poder público. Por meio do PMI, a Administração Pública licitante poderá solicitar à iniciativa privada a propositura e realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam para questões de relevância pública, permitindo que o autor dos estudos participe na futura licitação.

Assim como ocorre nas concessões e PPPs, as regras do PMI, sobretudo no que se refere à aceitação dos estudos pelo poder público e ressarcimento de valores, deverão ser disciplinadas no edital de chamamento público.

4) Introdução de nova modalidade de licitação: o Diálogo Competitivo

Outro importante avanço é a criação do Diálogo Competitivo como modalidade de licitação. A novidade será aplicável aos casos em que o poder público precisa se valer do setor privado para entender quais são as soluções, obras, técnicas e serviços mais adequados às necessidades públicas. São os casos em que há, por exemplo, inovação tecnológica ou técnica, comuns na área da saúde, em que os meios para se chegar à finalidade pretendida pela Administração Pública não são facilmente identificados pelos agentes públicos responsáveis pela contratação.

Nessas circunstâncias, seguindo regras especificamente criadas pela Lei 14.133, a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados por critérios objetivos, visando a desenvolver alternativas. Junto com o PMI, o Diálogo Competitivo promete garantir mais transparência e segurança jurídica nas interações de potenciais licitantes com a Administração Pública.

5) Prazos maiores para novos contratos: a vigência limite que era de 60 meses agora pode chegar a 10 anos

A Lei 14.133 permite a celebração dos respectivos contratos com prazos de até 5 anos, podendo chegar a até 10 anos em casos específicos, a exemplo dos contratos que envolvam parcerias para transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o SUS (art. 108). Prazos mais alargados permitem que os contratos sejam aderentes à complexidade das contratações, sobretudo aquelas que envolvem investimentos com necessidade de prazos mais flexíveis para sua amortização. No regime da Lei 8.666, a regra geral era a celebração de contratos limitados à vigência do orçamento, 12 meses prorrogáveis por iguais períodos, sempre limitados a 60 meses.

Avanços na saúde 

O novo marco legal cria regras que se adaptam à complexidade das contratações do setor de saúde, inserindo no texto normativo instrumentos jurídicos que certamente trarão mais eficiência, organização, transparência e celeridade. É esperado, ainda, que diversas políticas públicas e regulações sejam revistas, para fins de adequação às novas diretrizes estabelecidas para o setor.

No campo econômico per se a expectativa é que o setor de saúde no Brasil experimente um crescimento exponencial em infraestrutura e tecnologia, como instrumentos facilitadores à oferta de alta qualidade. Investimentos estes associados ao desenvolvimento de ecossistemas de saúde, que incluem, por exemplo, hospitais, centros de pesquisa, biotechs, big techs, digital health.

Esses ecossistemas promovem a colaboração entre empresas, instituições acadêmicas e profissionais de saúde, estimulando a criação de novas soluções em saúde, impulsionando a inovação e o crescimento. E esta união de esforços, num futuro próximo, acabará claramente refletida na eficiência e qualidade dos produtos e serviços de saúde em circulação no Brasil.

Ao incorporar as boas práticas de planejamento e organização do mercado, a administração pública amplia a segurança jurídica de seus contratos, atraindo mais empresas, ampliando e aprimorando ações e serviços de saúde constitucionalmente assegurados aos cidadãos. Estamos no momento ideal de promoção e colaboração entre os setores público e privado.

LIFE SCIENCES, HEALTHCARE E CANNABIS

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