TCU joga luz sobre o art. 64 da Lei de Licitações e reitera a permissão para juntada de documentos nas fases de classificação ou habilitação para atestar situações pré-existentes à sessão de licitação
Por Carolina Caiado
Em recente decisão, o Tribunal de Contas da União (TCU), reiterou os precedentes que já tinham sido emitidos pela Corte em 2022[1], manifestando-se favoravelmente à juntada de documentos nas fases de classificação ou habilitação, visando a atestar situações pré-existentes à sessão pública da licitação. Trata-se de decisão muito importante, pois pontua a correta interpretação do art. 64, I, da Lei nº 14.133/2021, a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos ou apenas Lei de Licitações.
O artigo 64 da Lei de Licitações disciplina o dever que tem a administração pública de realizar diligências para sanar dúvidas quanto aos documentos apresentados no curso da licitação, que possam ser dirimidas em prol da seleção da proposta mais vantajosa para o poder público, desde que não redundem na substituição ou apresentação de novos documentos. Vejamos a íntegra do dispositivo legal:
- Art. 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:
- I – complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;
- II – atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.
- 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.
- 2º Quando a fase de habilitação anteceder a de julgamento e já tiver sido encerrada, não caberá exclusão de licitante por motivo relacionado à habilitação, salvo em razão de fatos supervenientes ou só conhecidos após o julgamento.
Avanço
O dispositivo marca evidente evolução do texto legal, mais aderente aos princípios da eficiência e economicidade que regem as licitações. Embora a possibilidade de realização de diligências não seja novidade, pois já havia sido prevista na revogada Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002) e na Lei de PPPs (Lei nº 11.079/2004), a vedação de apresentação de “novos documentos” acabou por dar margem à interpretação literal da lei, no sentido de sanar somente falhas materiais, mas quase sempre de modo a evitar a juntada de novos documentos, ainda que relativos a situações pré-existentes à licitação.
Nesse sentido, o citado art. 64 apresenta redação mais detalhada, explicitando nos incisos I e II as situações nas quais os licitantes poderiam apresentar novos documentos na licitação. Contudo, a redação do inciso ressaltou que tais novos documentos seriam para complementar aqueles já juntados pelas licitantes, o que à primeira vista impede a juntada de qualquer novo documento, ainda que para atestar situação pré-existente da licitante. Essa redação acabou por gerar interpretações equivocadas acerca do real objetivo da Lei 14.133/2021.
Na prática
Citemos como exemplo a comprovação da regularidade fiscal das empresas sediadas no Município de São Paulo. O art. 68, III, da Lei de Licitações estabelece que deverá verificar a “regularidade perante a Fazenda federal, estadual e/ou municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei”. Via regra, os editais repetem o texto legal, nem poderia ser diferente, pois cada ente federativo tem um documento, certidão e forma específica para declarar a regularidade fiscal dos contribuintes. Seria impossível listar de forma categórica a certidão ou documento exato a ser juntado.
No Município de São Paulo, a Fazenda Pública emite certidões distintas para atestar a regularidade fiscal, quais sejam: Certidões Negativas de Tributos Mobiliários e Imobiliários. Não raro somos procurados por clientes erroneamente inabilitados em licitações por terem apresentado somente Certidão Negativa de Tributos Mobiliários, em razão de não serem contribuintes de tributos imobiliários, devidos apenas pelos proprietários de imóveis no Município de São Paulo.
Os locatários de imóveis devem pagar os custos do IPTU por força da legislação que rege as locações, mas tal fato não os torna contribuintes do tributo, que seguem sendo os proprietários dos imóveis. Nestes casos, é possível extrair do site da Prefeitura de São Paulo documento demonstrando que a licitante não é contribuinte de IPTU, portanto, é inaplicável a ela apresentação de Certidão Negativa de Tributos Imobiliários.
A mesma situação ocorre com as Certidões Negativas de Tributos Estaduais em São Paulo, onde são emitidas duas certidões distintas, quais sejam: Certidão Negativa de Créditos Não-Inscritos na Dívida Ativa e Certidão Negativa. Ambas as certidões podem ser emitidas online, inclusive pela Comissão de Licitação no momento da análise dos documentos apresentados.
Reforço positivo
Nesse contexto, a decisão do TCU é muito relevante para trazer mais segurança jurídica aos processos licitatórios. A correta interpretação do citado art. 64 da Lei de Licitações deve ser no sentido de que o agente público, integrante da Comissão de Licitações, deve buscar todas as informações disponíveis na internet para checar se as condições de habilitação são pré-existentes à data da apresentação das propostas. Hoje, praticamente todas as certidões são emitidas online e não têm qualquer validade jurídica sem que o agente público entre no site confira sua validade.
Por essa razão, não há motivo para inabilitar licitantes que eventualmente não apresentem certidões passíveis de serem diligenciadas pela internet. Tampouco devem deixar de solicitá-las às licitantes. A inabilitação ocorrerá somente se a situação de regularidade tiver ocorrido após a data da apresentação das propostas. Neste caso, a licitante, de fato, estaria irregular quando da apresentação de sua proposta.
E a decisão vai além, devendo a Comissão de Licitação solicitar novos documentos e informações visando a verificar justamente a situação pré-existente das licitantes, assim entendida como a real situação de regularidade da licitante quando da apresentação de sua proposta na licitação. Nesse sentido, o TCU determinou à entidade licitante que evitasse inabilitar licitantes por ausência de documento ou informação que pudesse ser verificada por meio de diligência.
No caso concreto, a empresa inabilitada teria deixado de apresentar a íntegra do balanço patrimonial exigível e documento que comprovasse o cumprimento da reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social. Em ambos os casos, os requisitos exigidos no edital de licitação já existiam e estavam regulares previamente à data de apresentação da proposta. Embora a licitante não tenha apresentado documentos suficientes para sua comprovação, a realização de diligência com a consequente apresentação dos documentos sanaria as dúvidas, sem qualquer violação ao art. 64 da Lei de Licitações.
Decisões dessa natureza são essenciais, tendo em vista o dever de legalidade que rege a atuação dos agentes públicos. O respaldo interpretativo da lei em acórdãos do TCU é o que garante o conforto a licitantes e agentes públicos para tratarem das situações que ultrapassam a literalidade da lei.
______________________________________________________________________
[1] Acórdão nº 602/2025, analisado neste artigo. Julgamento em 19/03/2025. Plenário do TCU. Rel. Ministro Antonio Anastasia. Disponível em Pesquisa textual | Tribunal de Contas da União. Acesso em 08/04/2025. A decisão faz referência aos Acórdãos nº 966/2022 e 988/2022, ambos julgados pelo Plenário do TCU.
Comentários