Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: a polêmica cartilha do Governo sobre o uso e a legalização da cannabis
Durante o IV Seminário Intersetorial de Prevenção, Conscientização e Combate às Drogas, realizado em 22 de junho, o Ministério da Cidadania lançou uma cartilha elaborada pela Senapred (Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas), em parceria com os ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da Infraestrutura, e da Justiça e Segurança Pública, intitulada “Os Riscos do Uso da Maconha e de sua Legalização”. O documento reflete o posicionamento do governo, contrário à legalização da maconha independentemente do fim a que se destina, e traz em seu conteúdo, de forma temerária, uma série de informações inverídicas, desprovidas de fundamentação fática e/ou técnica e, na contramão de discussões mundiais sobre o tema, de pesquisas, descobertas científicas e evidências inegáveis dos benefícios à saúde, subestima a utilização medicinal da erva, merecendo destaque as afirmações de que a ‘Maconha não é Remédio’, ‘NÃO existe “maconha medicinal”’, e de que o uso terapêutico está baseado em ‘informação científica de baixa qualidade’ e em ‘interesses financeiros’.
Evidente que a publicação repercutiu negativamente e foi tema de diversos debates desde então, especialmente no que se refere à desconsideração dos comprovados benefícios que a utilização medicinal das substâncias derivadas da cannabis sativa, nome científico da maconha, tem gerado à saúde. Um retrocesso.
As associações de pacientes que fazem uso medicinal reagiram e, mediadas pela advogada Margarete Brito, diretora executiva da Apepi (Apoio a Pacientes e Pesquisa de Cannabis) organizaram um abaixo-assinado pedindo a retratação do Governo pelas fake news constantes da cartilha. Em comunicado, Margarete explica que ‘o documento será entregue ao Governo Federal como o intuito de pedir uma retratação a respeito da cartilha, que coloca a maconha como droga da morte’.
A nota de repúdio elaborada ressalta que, apenas na base de dados da PubMed, existem mais de 28 mil pesquisas científicas sobre o uso da Cannabis medicinal, o que, por si só, derruba uma das inverdades trazidas pelo Governo, de que as informações científicas seriam de ‘baixa qualidade’.
Outro ponto que salta aos olhos quando da leitura da cartilha é a descrição para com relação a suposta dependência causada pelo uso da maconha medicinal. Tal como descrito, desconsidera-se que o uso dos produtos medicinais a base da erva demanda prescrição médica adequada e individualizada, observando-se as necessidades de cada paciente. Não se pode admitir que uma questão de acesso à saúde, ciência, remédios e economia se transforme em pauta ideológica, em que se discuta tráfico e drogas, quando o assunto não é este. O fato é que o preconceito puro e simples para com o uso de Cannabis medicinal, tal como se extrai da leitura da cartilha elaborada pelo governo, reforça estigmas equivocados e ultrapassados, induz o leitor a erro e gera insegurança à população.
“E essa inconformidade generalizada muito se dá pelo fato desta cartilha também fazer um “3 em 1” dos mercados medicinal, industrial e recreativo da cannabis, como se estes fossem pares indissociáveis. Outra informação tendenciosa, já que cada segmento possui sua própria idiossincrasia. Numa linguagem bastante popular, aqui cabe a anedota ‘uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa’” – diz Bruna, sócia de Life Sciences, Healthcare e Cannabis do CMA.
Não há como fechar os olhos para as evidências técnicas e científicas que comprovam a melhora significativa na qualidade de vida das pessoas que convivem com severas sequelas de doenças crônicas e que fazem uso da cannabis medicinal. Em depoimento emocionado durante a reunião da Comissão de Direitos Humanos no Senado Federal em 2019, a senadora Mara Gabrilli sensibilizou os colegas da Comissão de Direitos Humanos a aprovar a sugestão legislativa que propõe a regulamentação do uso medicinal da cannabis, por meio do PL 399/2015. Em seu testemunho, a senadora relatou sobre os inúmeros avanços em seu tratamento trazidos pelos medicamentos à base de cannabis. “Eu mexo muito pouco do pescoço para baixo, mas eu mexo muito mais do que já mexi um dia, porque eu era uma pessoa deitada, que respirava em uma máquina, que não falava, que não sentava, que não sentia e que não mexia”, relata Mara, vítima de um acidente de carro que a deixou tetraplégica.
A aceitação do uso da Cannabis medicinal, tanto pelos médicos como pela sociedade, está crescendo gradativamente. Em 2020, desde que a Anvisa autorizou o uso terapêutico nos tratamentos de diversas doenças, mais de 45 mil unidades de produtos à base de Cannabis foram importados pelo país e mais de 800 médicos brasileiros já prescreveram produtos derivados.
O mercado da cannabis medicinal já é considerado como um sucesso mundo afora. Caso a regulamentação brasileira seja aprovada, a perspectiva é de que deva movimentar R$ 9,5 bilhões até o final de 2025. Só em 2020, a venda legal de Cannabis no mercado mundial atingiu R$ 122 bilhões, um aumento de 48% na comparação com 2019. A estimativa é que a taxa média de crescimento para o setor seja de 17% ao ano, o que levaria o faturamento para R$ 321,7 bilhões em cinco anos.
Cabe, então, às associações médicas, científicas e de pacientes pressionar o Governo para que este deixe de lado as pautas ideológicas e políticas e se retrate perante a sociedade, reconhecendo o posicionamento equivocado de seu alto escalão quanto à cannabis medicinal, bem como os comprovados e inquestionáveis benefícios que o uso proporciona a quem dela necessita. A retratação, além de priorizar a saúde pública, tende a fomentar e acelerar a aprovação da regulamentação já sob discussão bastante avançada no Congresso e, por conseguinte, alavancar as pesquisas científicas, movimentar a economia e reduzir os custos dos medicamentos, tudo em prol da saúde.
Nosso time de Life Sciences, Healthcare e Cannabis está à disposição para esclarecer eventuais dúvidas sobre o assunto.
Principais Contatos:
Bruna B. Rocha, Sócia, Life Sciences, Healthcare, Cannabis
Juliana Marcondes de Souza, Associada, Life Sciences, Healthcare, Cannabis
Victoria Cristofaro Martins Leite, Associada, Life Sciences, Healthcare, Cannabis
* Com a colaboração de Luiza Meira Novaes
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