Você Sabia que os povos tribais e indígenas devem ser consultados de forma prévia, livre e informada? 20 out 2023

Você Sabia que os povos tribais e indígenas devem ser consultados de forma prévia, livre e informada?

Recentemente, a 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) ratificou a sentença que responsabilizou o município de Oiapoque, localizado no Amapá, pelo pagamento de danos morais coletivos no montante de R$ 100.000,00 (cem mil reais) à Comunidade Quilombola de Vila Velha do Cassiporé que se encontra no mesmo município. A condenação se deu em razão da execução de obras na região sem a realização prévia de consultas aos habitantes locais. A decisão se alinha às diretrizes estabelecidas pela Convenção nº 169 da OIT, a qual foi utilizada como fundamento para a condenação e desempenha papel crucial na salvaguarda dos direitos das comunidades indígenas e tribais em âmbito global (TRF-1. 11ª Turma. Newton Ramos. Reexame Necessário nº 1000002-56.2021.4.01.3102. D.J.24.07.2023). Mas você sabe o que é a Convenção nº 169 da OIT?

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é um tratado internacional que versa sobre Povos Indígenas e Tribais e estabelece normas importantes para a promoção do respeito aos direitos humanos, a preservação das culturas e a garantia da participação dessas comunidades na tomada de decisões que as afetam. Em 2002, o Brasil aprovou o texto da Convenção por meio do Decreto Legislativo nº 143/2002 e, em 19 de abril de 2004, promulgou a OIT 169, por meio do Decreto Federal nº 5.051/2004. No cenário atual, a Convenção está vigente no território nacional por meio do Decreto Federal nº 10.088/2019, demonstrando o compromisso institucional do país – e que independe de governo – em respeitar e proteger os direitos das comunidades indígenas e tribais.

Considerando aspectos humanitários e culturais inerentes ao respeito e proteção dos Povos Indígenas e Tribais, o tratado instituiu diversos instrumentos de importância fundamental para ampliar a influência das populações tradicionais nas decisões estatais (de licenciamento, por exemplo), incluindo, entre outros, a obrigatoriedade de realização das consultas prévias livres e informadas.

No Brasil, o Decreto Federal nº 6040/20071, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, converge com a classificação prevista na Convenção nº 169 e define em seu art.3 º:

I – Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

II – Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.

A despeito de não enunciarem expressamente, os dispositivos acima possuem inspiração na Convenção OIT 169 e não deixam dúvidas sobre a abertura do conceito ali inscrito e sobre a aplicabilidade dos dispositivos da referida Convenção às comunidades tradicionais, reconhecidas como povos tribais (DUPRAT,2014).

De acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos*, “comunidade tribal” é caracterizada pela relação profunda e inclusiva com suas terras ancestrais, que não se concentra no indivíduo, mas na comunidade como um todo. Além disso, essa comunidade tribal possui um conceito comunal de propriedade. Portanto, uma “comunidade tribal” refere-se à comunidade que mantém uma relação especial com suas terras ancestrais e uma concepção de propriedade comunal, assim como ocorre com os povos indígenas (Corte IDH. Caso do Povo Saramaka Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. Série C No. 1722.; Corte IDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C No. 79.)

Os Tribunais brasileiros, de maneira geral, entendem que as comunidades tradicionais são aqueles grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (TRF-1 – AC: 00176134620164013900, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 18/04/2018, QUINTA TURMA, Data de Publicação: 14/05/2018; TRF-4 – AG: 50272345320194040000 5027234-53.2019.4.04.0000, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 22/10/2019, TERCEIRA TURMA).

O Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 7008 de 2023, que contesta a Lei nº 16.260/2016 do Estado de São Paulo, autorizando a concessão de áreas estaduais à iniciativa privada para a exploração de atividades de ecoturismo e extração comercial de madeira e subprodutos florestais trouxe uma definição para as comunidades quilombolas e “demais comunidades tradicionais”, citando o art. 1º da Convenção nº 169 da OIT, além de definir que os povos tribais assim se caracterizam, em razão das suas condições sociais, culturais e econômicas que os distingue de outros setores da coletividade nacional, e que estão regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial.

Não por outro motivo que os povos tribais, ou comunidades tradicionais e indígenas, devem ser consultados de forma diferenciada, não devendo ser sua consulta confundida com a audiência pública dos processos de licenciamento ambiental.

Os artigos 4º, o 6º e o 7º da Convenção nº 169 da OIT versam sobre as formas de consulta, os quais preveem que (i) medidas especiais são necessárias para proteger os interesses das comunidades indígenas e tribais, incluindo a consulta prévia em projetos que possam afetar seus direitos e territórios; (ii) os governos devem consultar as comunidades de boa-fé e, sempre que possível, com o objetivo de obter seu consentimento; e (iii) a realização de consulta será necessária sempre que políticas e programas de desenvolvimento possam afetar diretamente essas comunidades.

A consulta tem por pressuposto, portanto, o domínio dos povos indígenas e tribais sobre a sua existência e a expectativa de que, eventualmente, ações externas podem representar impacto sobre seu modo de vida.

A consulta prévia coaduna, especialmente, com o art. 5º, I, da Resolução CONAMA/1986 que, por seu turno, determina que o impacto ambiental deve “contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto” (DUPRAT, 2014).

Além disso, destaca-se o entendimento de que a consulta prévia pode ser revisada a cada etapa do projeto, com o objetivo de se manter a antecipação, a boa-fé e o diálogo contínuo com as comunidades tribais e indígenas.

Não existe um procedimento de consulta estipulado pela OIT 169 ou previsto em lei, pelo contrário, ela se adapta às particularidades de cada comunidade, de acordo com o seu Protocolo de Consulta, caso existente, já que é essencial que o grupo afetado compreenda plenamente o projeto e que essa consulta seja feita de acordo com a forma como eles gostariam de ser consultados.

Desta forma, a recente decisão do TRF1 proferida nos autos do Reexame Necessário nº 1000002-56.2021.4.01.3102, que condenou o município de Oiapoque ao pagamento de dano moral coletivo à Comunidade Quilombola de Vila Velha do Cassiporé por falta de consulta prévia em obras na região, é exemplo prático a respeito da aplicação dos princípios acima mencionados e reforça a importância de sua efetiva implementação.

Para mais informações, consulte nosso time de Direito Ambiental.

*O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos no ano de 1992 (Decreto Federal nº 678/1992) e reconheceu a competência jurisdicional contenciosa da Corte IDH para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 (Decreto Federal nº 4.463/2002).

 

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Vilmar Gonçalves

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